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26/07/2024

Operação Escudo/Verão: Um ano de violência e letalidade

Com 84 pessoas mortas e evidências de execuções sumárias e tortura, as operações na Baixada Santista são consideradas as mais letais da história da Polícia Militar de São Paulo, desde o massacre do Carandiru. Um ano depois de seu início, autoridades, como o governador Tarcísio de Freitas, parecem continuar “nem aí”



Um homem negro, de 33 anos, saiu de casa para comprar pão, em 14 de fevereiro de 2024, na comunidade do Saboó, em Santos, quando foi atingido no braço por um disparo de fuzil de longa distância. Testemunhas afirmam que, mesmo após implorar por sua vida, policiais da Rota o alvejaram com mais quatro tiros. Segundo a irmã da vítima, os agentes ainda atiraram no outro braço apenas para apagar a tatuagem de fuzil que o homem possuía. Nenhum dos policiais usava câmeras corporais. Para o Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, a ação foi considerada uma “neutralização do criminoso”.

O homem foi uma das 84 vítimas das operações Escudo e Verão, realizadas na Baixada Santista, entre julho de 2023 e abril de 2024. Juntas, elas são consideradas as operações policiais mais letais depois do massacre de 111 presos do Carandiru — os Crimes de Maio, de 2006, que tiraram a vida de mais de 500 pessoas, não são considerados uma operação policial. 

A história desses abusos compõe um relatório colaborativo, elaborado pela Ouvidoria de Polícia de São Paulo, com organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, e movimentos de defesa dos direitos humanos. O relatório mostra como as operações foram marcadas por execuções sumárias, tortura e obstrução da justiça.

Vingança como projeto

A série de assassinatos ocorreu em retaliação à morte do policial militar da Rota Patrick Bastos Reis, de 30 anos. “Ouvi que seriam ao todo trinta pessoas mortas, uma para cada ano de vida do soldado Reis”, disse à revista Piauí Fernanda Balera, coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, ao visitar a Baixada três dias após a morte de Patrick. No total, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), foram notificadas 84 mortes, 2 mil pessoas foram presas, além de 240 armas e quase 3,6 toneladas de drogas apreendidas. 

A SSP-SP justificou que as operações faziam parte de um plano previamente elaborado para sufocar o tráfico de drogas na região portuária, dominada pelo PCC.

Inteligência vs. guerra contra os pobres

No mesmo mês em que se encerraram as operações Escudo e Verão, uma outra operação do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco), do Ministério Público, com apoio da PM e por meio de um trabalho de inteligência, desmantelou duas empresas de ônibus usadas pelo PCC para lavar dinheiro. Essas empresas receberam mais de R$ 800 milhões em remuneração da prefeitura de São Paulo em 2023.

Em 2022, uma investigação da Polícia Federal no Porto do Rio de Janeiro, que envolveu a infiltração de um agente em duas quadrilhas, resultou na prisão de 25 traficantes internacionais e na apreensão de 10,8 toneladas de drogas — três vezes mais do que foi apreendido em Santos. 

Não há registro de mortes nessas operações.

“Com inteligência e estratégia você consegue resultados que desestruturam os grupos criminosos, não com essa guerra de vingança, essa guerra contra pobre que até mancha a imagem da polícia com a qual muitos passam a achar que polícia é bandido”, aponta o jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, no jornal Deutsche Welle Brasil. “Você pode ter um balanço com números de drogas tal, mas do ponto de vista estratégico é como enxugar gelo”.

Onde estão os nossos mortos?

Em março de 2024, pouco antes do fim da operação Verão, o governador Tarcísio de Freitas foi questionado sobre as denúncias apresentadas à ONU pela Conectas e Comissão Arns em relação às irregularidades na operação. “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. (…) E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, disse.

Em fevereiro, a Defensoria Pública de São Paulo, em conjunto com a Conectas, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto Vladimir Herzog, já haviam pedido à ONU e à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) o fim da operação e a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais pelos policiais.

“Há indícios da não preservação das cenas dos crimes, bem como a repetição da versão policial em todas as ocorrências com morte: que os suspeitos portavam drogas, atiraram e que teriam sido socorridos ainda com vida. Nesse contexto, a ausência de corpos nas cenas de crimes impossibilitaria que a perícia coletasse provas técnicas”, aponta o documento. 

De acordo com uma reportagem do g1 e da TV Globo, corpos de vítimas da PM estavam sendo levados a hospitais como vivos para evitar a perícia. 

Alta letalidade

“Eu nem sabia que eram 56 [mortos]”, disse o Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, em relação ao número de vítimas fatais somente da operação Verão, na coletiva de imprensa sobre o encerramento da ação. 

Segundo um levantamento da revista piauí, Derrite já foi investigado por 16 homicídios ocorridos durante operações nas quais participou como policial da Rota — mas os inquéritos não apontam o autor dos disparos finais. Após uma operação conhecida como Caso Barracuda, que resultou na morte de seis homens e na prisão de três policiais sob a suspeita de tortura, Derrite foi afastado da corporação, em 2012. Seus superiores consideraram que sua atuação era letal demais.

Derrite já era conhecido nas redes sociais por conta de suas aparições em programas da Band e da Record, chegando a ser figura central em um reality show policial, “Operação de Risco”, da RedeTV!. Em 2018, se aproximou da família Bolsonaro, fazendo campanha com Eduardo Bolsonaro, que se tornou o deputado federal mais votado do estado naquele ano. O ex-policial foi eleito para o mesmo cargo com 119 mil votos. Na campanha de 2022, venceu com o dobro de votos, mas renunciou para ocupar o cargo de secretário de Segurança, a pedido do governador. 

Como escreveu o jornalista João Batista Jr., na piauí, “Sua posse não foi bem recebida. Era jovem demais (38 anos), inexperiente (nunca tivera cargo de gestão), militar (rivalizava com a Polícia Civil) e tinha baixa patente (tenente, só virou capitão ao se aposentar)”. Além disso, “seus antecessores eram procuradores de Justiça, general de Exército, professor de direito, como o atual ministro Alexandre de Moraes, do STF. Tecnicamente mais qualificados, não tinham ligação com qualquer uma das polícias, cuidado que os governadores paulistas tomavam para não estremecer uma relação sempre tensa”.

 

Quem vigiará os vigilantes?

Desde que assumiu o cargo em janeiro de 2023, o secretário Derrite tem mostrado inclinação para beneficiar colegas que, assim como ele, têm um histórico de alta letalidade. No primeiro mês, ele defendeu uma ação da Rota que disparou 28 vezes contra um Honda Fit, matando dois ocupantes, apesar de uma câmera do metrô ter registrado um sargento plantando uma arma para simular uma troca de tiros. 

Em julho de 2024, a revista piauí relatou que a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo alterou discretamente as regras para o afastamento de policiais suspeitos de cometer crimes, sem anunciar a mudança no Diário Oficial. Um boletim interno removeu o poder dos comandantes regionais de afastar e investigar policiais envolvidos em ocorrências como corrupção ou adulteração da cena de um crime. Agora, apenas o subcomandante da PM, José Augusto Coutinho, próximo de Derrite, pode tomar essas decisões.

Antes disso, o Derrite também promoveu uma mudança radical na cúpula da PM, afastando, sem aviso prévio, 34 coronéis. Entre os quais, aqueles que haviam pedido moderação nas operações Escudo/Verão e a participação apenas de agentes com câmeras nos uniformes. 

De acordo com o FBSP, em 2020, último ano sem o uso de câmeras corporais, os soldados da Rota foram responsáveis por 86 mortes. Em 2022, o primeiro ano completo com o uso de câmeras, esse número caiu para 7. Em 2023, houve um aumento para 33 mortes. De janeiro ao início de maio de 2024, foram registradas 24 mortes. A Rota participou ativamente das operações Escudo/Verão. 

“Com a implementação das câmeras, todos os batalhões tiveram uma redução sensível no número de mortes por intervenções policiais, sem que isso significasse ampliação do risco por policial, muito pelo contrário, tanto que caiu o número de policiais assassinados. E esses números se mantêm, é uma redução muito expressiva. Até que em 2023 eles voltam a crescer”, disse à Folha de S.Paulo a diretora-executiva do FBSP Samira Bueno. “Isso revela que a gente já está diante de um desmonte do programa. Com a nova licitação, a situação tende a piorar.”

Em maio, o governo de Tarcísio de Freitas anunciou um edital para compra de 12 mil câmeras corporais, a fim de adquirir novos equipamentos que substituam os que estão atualmente em uso. Entidades da sociedade civil, incluindo a Conectas, demonstraram preocupação com as novas diretrizes, que prevêem o fim das gravações ininterruptas.

Cenas de um crime invisível

Além das câmeras corporais, os policiais não parecem demonstrar apreço por nenhum outro tipo de registro. Em julho de 2024, um ano depois do início das operações, a Justiça de São Paulo tornou réus mais dois policiais militares da Rota por homicídio qualificado e obstrução de provas da morte de Fábio Oliveira Ferreira – a primeira pessoa morta na operação Escudo. 

Um dos réus é o capitão Marcos Correa de Moraes Verardino, coordenador operacional da ação e o primeiro oficial denunciado, que desferiu três tiros de fuzil em Ferreira, mesmo depois de rendido. O outro é o cabo Ivan Pereira da Silva, que disparou mais duas vezes no peito da vítima, já caída ao chão. 

Ao perceberem que a ação havia sido registrada pelas câmeras de uma residência próxima, os agentes invadiram a casa, solicitaram acesso às gravações e devolveram o equipamento após cerca de 20 minutos, alegando que ele não estava gravando. “Apurou-se no curso da investigação, contudo, que os DVR’s e os HD’s estavam funcionando perfeitamente, ou seja, gravavam e armazenavam as imagens captadas pelas oito câmeras de monitoramento instaladas”, narra a denúncia, conforme publicou o UOL, reforçando que as imagens sumiram. 

No total, seis policiais militares da Rota são réus acusados de cometer homicídio durante a operação Escudo.

Violência sem fim

Nada disso, no entanto, parece compensar a dor de Beatriz Silva Rosa, de 29 anos. Ela é viúva de Leonel Andrade Santos, que foi morto aos 36 anos, em meio à operação Verão. Ao contrário do que justifica a Secretaria de Segurança Pública, Leonel não parecia ser uma pessoa apta a entrar em confronto com a polícia. 

“Ele usava duas muletas para tudo, não conseguia andar sem elas, muito menos atirar”, contou Beatriz à Deutsche Welle Brasil. Segundo vizinhos, os policiais mandaram Leonel jogar as muletas e correr, sendo atingido por um tiro no tórax ao não conseguir. 

“Meu filho mais velho todo dia olha pra mim e fala: ‘mãe, eu vou parar de estudar, eu quero matar os policiais que mataram meu pai’. Aí eu ensino pra ele que não pode, que se quer ajudar as pessoas, que estude e vire advogado”, relata. “Eles querem matar os pais na favela, esperando os filhos crescerem para trocar tiro com eles e matar os filhos também”.

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