Pessoas pretas, pardas e indígenas são as mais atingidas pelas privações de recursos e direitos no Brasil, o que os deixa mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas. É o que atesta o Censo 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no fim de fevereiro.
Os dados confirmam a estrutura de racismo ambiental que prevalece no país – e que merece estar no centro das discussões no momento em que o Brasil passa por mais uma onda de calor extremo e alertas de chuvas fortes na região Sudeste, com capacidade para causar alagamentos e deslizamentos.
Racismo ambiental é um termo que se refere à intersecção entre injustiça racial e ambiental, usado para explicar como a degradação ambiental impacta mais intensamente as populações étnico-racializadas. Essas mesmas populações são as que serão afetadas desproporcionalmente também pelos impactos da emergência climática.
Um exemplo é o que acontece no Sol Nascente, a 35 km do centro de Brasília que, no Censo de 2022, ultrapassou a Rocinha, no Rio de Janeiro, como maior favela do país. Em 2023, o lugar havia protagonizado discussões sobre racismo ambiental por uma foto que viralizou nas redes sociais, mostrando o chocante contraste entre a arborização no Sol Nascente em comparação com o Lago Sul, região nobre de Brasília.
Um bom planejamento com áreas verdes nas cidades é a efetivação do direito humano a um ambiente ecologicamente equilibrado. As árvores melhoram a qualidade de vida nos centros urbanos, pois além do bem estar psicológico, proporcionam conforto térmico pelo o aumento da umidade do ar pela evapotranspiração e sombra pelas suas copas. Também ajudam a evitar alagamentos devido ao escoamento e à infiltração da água das chuvas no solo.
Na região da favela do Sol Nascente (DF), onde 67,9% dos moradores se consideram pardos ou pretos, conforme a última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD), de 2021, mais de 40% das famílias vivem com uma renda de um a dois salários mínimos por mês. Com a ausência de planejamento, os moradores sofrem com pouca mobilidade urbana, falta de saneamento básico, escassez de estruturas de lazer e habitação digna. Fenômenos extremos como chuvas torrenciais e ondas de calor, cada vez mais frequentes por causa das mudanças climáticas, agravam todos esses problemas, aumentam a desigualdade social e violam direitos humanos fundamentais.
Outro caso é o da Baixada Santista e do litoral norte de São Paulo, onde 25 mil habitações estão em áreas de risco – o dado foi obtido a partir do Censo 2022 e de um mapeamento de suscetibilidade a deslizamentos feito pelo Serviço Geológico do Brasil. O problema é fruto, principalmente, da desigualdade social e do crescimento desorganizado. A especulação imobiliária do litoral configurou a desigualdade socioespacial: quanto mais distante das praias turísticas, menor o rendimento per capita e mais domicílios ocupados pela população fixa. Pessoas que, muitas vezes, acabaram se instalando, por uma questão de sobrevivência, em áreas de risco como encostas de montanhas e margens de rios. Mais uma vez, são os mais pobres os mais afetados.
Os moradores desses locais sofrem com exposição aos desastres naturais, que estão aumentando de frequência com as mudanças climáticas, e lidam com riscos de deslizamentos, desabamentos e inundações, como aconteceu no desastre de São Sebastião de 2022.
Analisando os dados do Censo 2022, vemos que 83,5% das pessoas brancas têm esgotamento sanitário considerado adequado, enquanto o número diminui para 75% das pessoass pretas, 68,9% das pardas e 29,9% das indígenas., A região Norte merece especial atenção das políticas públicas, pois dos 78% dos moradores que se declaram pretos e pardos, só 46,4% – menos da metade dos seus 17,2 milhões de habitantes – têm saneamento básico.
Regiões sem saneamento adequado podem virar focos de doenças transmitidas a partir da água contaminada ou de vetores como ratos, baratas e moscas, que são atraídos pelo esgoto a céu aberto e pela disposição inadequada de resíduos.
O Censo 2022 aponta, ainda, que cerca de 9,1% da população não tem acesso à coleta direta ou indireta de resíduos. Entre os estados, o Maranhão tem a pior taxa, com cerca de 30% dos moradores sem coleta. Já entre as regiões, a cobertura mais baixa é o Norte do país (21,5%).
O acúmulo de lixo tem vários efeitos na saúde pública, podendo contaminar o solo, os lençóis freáticos, os rios e os poços usados para o abastecimento de água.
“Esse panorama está ligado à distribuição regional dos grupos, com presença maior da população de cor ou raça preta, parda e indígena no Norte e Nordeste, regiões com menor infraestrutura”, explica Bruno Perez, analista do IBGE, em nota à revista Carta Capital. No entanto, “em todos os 20 municípios brasileiros mais populosos, a população de cor ou raça branca têm mais acesso a abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo do que a população de cor ou raça preta, parda e indígena”, conclui.
Em relação à moradia, Roraima é o Estado brasileiro que apresenta o maior percentual de pessoas vivendo em habitações precárias. No total, 2,48% da população vivem nessas condições. No Amazonas, 33.785 pessoas moram precariamente, sendo que 29.668 delas são pretas, pardas ou indígenas. A situação se repete no Acre, Mato Grosso, Pará, Amapá, Maranhão e Tocantins e em Rondônia, como mostra reportagem do site Amazônia Real.
“Os resultados do Censo 2022 mostram que a negligência do Estado afeta de forma desproporcional pessoas que já estão em desvantagem social e econômica, enfrentando fatores como a falta de acesso a recursos, infraestrutura e direitos . Esses dados evidenciam o racismo ambiental e climático no país. Se ações não forem tomadas, a situação pode piorar, considerando os impactos cada vez maiores dos efeitos das mudanças climáticas sobre populações já vulnerabilizadas”, afirma Julia Neiva, coordenadora Programa Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas.
O Censo produz informações imprescindíveis para a definição de políticas públicas que devem ser implementadas, considerando as desigualdades estruturais do Brasil – desigualdades raciais, étnicas, de gênero e classe. Este olhar é essencial para a concretização do direito a um meio ambiente equilibrado como um direito humano fundamental. Trata-se do ponto de partida para alcançar plenamente a dignidade humana e efetivar outros direitos humanos, conforme resolução recente das Nações Unidas, que considera o meio ambiente limpo, saudável e sustentável como um direito humano.