Nesta entrevista, a coordenadora do programa Direitos Socioambientais da Conectas, Julia Neiva, e o advogado e doutor em direito internacional Jefferson Nascimento, traçam um panorama da situação das vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho um ano depois da tragédia que vitimou, ao menos, 270 pessoas e deixou outras onze desaparecidas.
Como está a situação das vítimas do desastre de Brumadinho hoje?
Julia Neiva – A situação das vítimas e atingidos pelo desastre da Vale em Brumadinho é preocupante, envolvendo um quadro de violação de direitos que inclui a tristeza da privação do luto, aumento do adoecimento mental em Brumadinho e região, luta pela reparação integral e justa e auxílio emergencial digno, convívio com a impunidade dos responsáveis pela tragédia e dificuldades de acesso à água.
Vocês poderiam elencar os principais pontos de preocupação?
Jefferson Nascimento – Apesar de não se limitar a estes fatos, acredito que podemos listar seis pontos que nos causam séria preocupação em relação a situação das pessoas.
Quais medidas ainda devem ser adotadas pelas empresas e governos?
Julia Neiva – A caracterização formal de comunidades como atingidas pelo desastre em Brumadinho é uma demanda importante, uma vez que é um requisito para o exercício do direito a reparações. Houve uma redução do escopo de reconhecimento de pessoas e comunidades atingidas pelo rompimento, o que é perceptível, por exemplo, na extensão da concessão de auxílios emergenciais: pela nova proposta da Vale, de 93 mil a 98 mil beneficiários de um total de 106 mil passarão a receber metade do pagamento emergencial que vinha sendo realizado desde fevereiro de 2019.
Qual a atuação da Conectas neste caso (ou no que tange a mineração em geral)?
Julia Neiva – Antes de mais nada, temos sempre apoiado e sido solidários Às comunidades atingidas pelos desastres do Rio Doce e de Brumadinho, contribuindo para que suas vozes sejam ouvidas e também para que haja reparação integral e justa, bem como responsabilização pelos desastres. A Conectas também tem atuado no plano nacional e internacional:
O que a tragédia de Brumadinho representa para o Brasil na perspectiva de violações socioambientais cometidas por empresas?
Jefferson Nascimento – É possível apontar alguns entendimentos sobre esta tragédia. Primeiro, que o país não aprendeu nada com o seu pior desastre socioambiental, o do Rio Doce, também considerado um dos piores do mundo. Além disso, não houve reparação adequada, integral, justa, percebe-se que o princípio da não repetição, princípio internacional de direitos Humanos, que integra o conceito de reparação integral não foi seguido.
Além disso, há uma fragilização das legislação e dos órgãos de controle. Isto porque a relação entre empresas e governos é demasiadamente próxima , as empresas influenciam o governo, o poder das empresas é de fato muito grande.
Vale ressaltar que há uma abissal assimetria de poder entre comunidades afetadas/vítimas e as empresas.
Por fim, diante de tudo isso, o Brasil não tem conseguido superar o modelo predatório de mineração e, como reflexo disso, é a total impunidade aos responsáveis.
O que dizem as autoridades internacionais sobre o caso?
Jefferson Nascimento – Quatro dias após o rompimento da barragem em Brumadinho, quatro procedimentos especiais das Nações Unidas se manifestaram sobre o desastre, pedindo uma investigação imediata, completa e imparcial do colapso, colocando em suspeita medidas preventivas adotadas após o desastre em Mariana e demandando responsabilização devida. Foi feito um chamado para priorização da avaliação da segurança de barragens existentes e ressaltada a necessidade de uma investigação transparente, imparcial, rápida e competente sobre a toxicidade dos resíduos.
Ainda em janeiro, a Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos instou autoridades brasileiras e a Vale a tomar todas as medidas para mitigar e evitar o agravamento de danos ao meio ambiente, além de assistir e facilitar os mecanismos de reparação às vítimas e familiares, ações urgentes sem as quais as consequências do desastre poderiam se tornar irreversíveis. A REDESCA-CIDH ainda manifestou preocupação com a existência de até 45 barragens de rejeitos em situação de risco em relação a suas condições de segurança, relembrando o cuidado que os Estados e as empresas devem ter à luz das obrigações em matéria de direitos humanos.
Em maio, a Vale deixou de fazer parte do Pacto Global da ONU, movimento que foi precedido por ofício assinado por Conectas e outras 17 outras entidades requerendo a exclusão da empresa da principal rede de responsabilidade social corporativa do planeta.
Em dezembro, o relator especial da ONU sobre resíduos tóxicos, Baskut Tuncak, visitou a região de Brumadinho durante missão oficial ao Brasil. Em declaração de final de visita, Tuncak afirmou que, em cinco anos de exercício do mandato e tendo conversado com outras comunidades cujos direitos foram violados por empresas, nunca havia presenciado tamanho trauma como aquele vivido pela comunidade em Brumadinho. O relator reitera sua percepção de que o que aconteceu em Brumadinho deve ser investigado como crime. “Não foi acidente. Como muitos dentro e fora do Brasil, eu acredito que esse desastre era ‘evitável e previsível’”, disse.
Quais os riscos de haver mais tragédias como as vivenciadas em Mariana e Brumadinho? O monitoramento de novos crimes está sendo realizado?
Julia Neiva – Segundo o relatório mais recente da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre segurança de barragens, hoje há 909 estruturas classificadas como de alto dano potencial associado dentre as 5.086 barragens de risco – ou seja, uma em cada cinco. Esse mesmo relatório aponta um incremento de 26% no montante de barragens nessa situação de alerta de 2017 para 209, concentradas majoritariamente nos estados da Bahia, Pará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Para enfrentar esse cenário, é necessário não apenas proibir novas barragens de “alteamento a montante” – tais quais as verificadas em Mariana e Brumadinho, as mais inseguras – como acelerar o processo de descomissionamento desse tipo de represamento por parte da empresas responsáveis. Em paralelo, é necessário o incremento dos orçamentos federal, estaduais e municipais para a realização de atividades de operação e manutenção dessas barragens essenciais para sua segurança.
Quais as medidas poderiam ser adotadas para prevenir novas catástrofes?
Jefferson Nascimento – É necessário a adoção de medidas de fortalecimento da prevenção, de aprimoramento das políticas de reparação e de estabelecimento de responsabilização efetiva. Para a prevenção, é necessário aprovar um marco normativo que aumente as exigência de segurança de barragem, assegure a transparência e participação social em questões ambientais, fortaleça o processo de licenciamento ambiental, reformar a legislação societária para fortalecer os deveres fiduciários para a responsabilização e prestação de contas de administradores e conselheiros, garantir recursos adequados para uma fiscalização socioambiental independente e estabeleça um marco vinculante de devida diligência em direitos humanos para empresas. Para a reparação, é necessário aprovar uma política nacional de direitos dos atingidos por barragens e criar um fundo para empreendimentos de alto risco e impacto. Para a responsabilização, é preciso alterar a lei penal para remover obstáculos à responsabilização da pessoa jurídica, administradores e prestadoras de serviços (ex. consultorias, auditorias) por graves crimes ambientais.