“Trabalho não falta. É hora de arregaçar as mangas e colocar a mão na massa”, escreveu, em setembro de 2001, a historiadora e ativista Wania Sant’Anna, no boletim do CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher). Tratava-se de um chamado para ação logo após o encerramento da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata das ONU (Nações Unidas), realizada naquele mesmo mês em Durban, na África do Sul.
Duas décadas mais tarde, em 2021, Sant’Anna avalia que o árduo trabalho de enfrentamento ao racismo, motivado por Durban, gerou frutos importantes, especialmente as conquistas de instrumentos estatais para diminuir o desequilíbrio entre brancos e negros no Brasil. Contudo, o caminho pela igualdade racial ainda é longo e difícil.
“Em Durban, reafirmamos que o enfrentamento ao racismo é uma pauta de direitos humanos. Também conseguimos deixar muito claro o papel fundamental do Estado neste enfrentamento”, diz a historiadora para a Conectas. Ela é uma das mais de 400 pessoas que integraram a delegação brasileira; a maior entre os 173 países participantes. Hoje, ocupa a vice-presidência do conselho curador do IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas).
Com forte presença de mulheres negras integrando organizações da sociedade civil, governos e centros de pesquisa, a delegação brasileira teve grande influência nas discussões da conferência. Isso ocorreu porque, antes mesmo da aterrissagem na África do Sul, os brasileiros e brasileiras já estavam trabalhando ativamente em discussões locais e regionais que apareceram na reunião global de 2001.
No livro Brasil e Durban – 20 anos depois, recém-lançado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra, Sueli Carneiro relata que, apesar das tensões e polarizações na conferência, os “afrodescendentes das Américas e os afro-brasileiros em particular tem muito o que comemorar pelo que Durban ratificou das conquistas da Conferência Regional das Américas, incorporando vários parágrafos acordados pelos Estados Americanos em Santiago do Chile”, em 2000. A conferência chilena foi o evento das Américas preparatório para Durban.
Portanto, no Chile e na África do Sul, Geledés, Criola, Cfemea e a Articulação Brasileira de Mulheres são algumas organizações que tiveram centralidade nos processos de discussão e decisão. Além disso, a brasileira Edna Roland, mulher, negra e ativista, foi a relatora geral III Conferência Mundial contra o Racismo.
Segundo Sant’Anna, o documento final de Durban, assinado pelo Brasil, tornou-se “um norteador para as políticas públicas contra o racismo” e insta os Estados a adotarem ferramentas concretas contra as desigualdades alicerçadas na raça.
Em artigo publicado no Nexo Jornal, o cientista político Atila Roque, também avalia desta forma. Para ele, a conferência “marcou uma guinada importante na posição do Estado brasileiro no reconhecimento da centralidade do racismo na estruturação das desigualdades e uma inflexão histórica na nossa política externa. Devemos, em grande parte, à Durban a elevação da luta contra o racismo como tema de destaque no debate público nas últimas duas décadas”.
As resoluções presentes na plataforma de Durban se materializaram em diferentes frentes no Brasil. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por exemplo, passou a utilizar o critério de autodeclaração de cor/raça nos censos demográficos por conta da influência da reunião. Ainda neste caminho, organizações — públicas, privadas e não governamentais — também começaram a registrar de forma mais sistemática dados de cor/raça de seus públicos, informações essenciais para diagnosticar a desigualdade racial na educação, saúde, segurança pública e outras áreas.
Uma das conquistas mais visíveis pós-Durban é adoção de cotas para estudantes negros nas universidades públicas brasileiras. Em 2012, uma lei federal (12.711) garantiu a reserva de 50% das vagas para este segmento da sociedade em todas as instituições federais de ensino superior. Ainda no campo da educação, outra lei federal (10.639), de 2003, tornou obrigatório o ensino de história e de cultura africana e afro-brasileira nas escolas.
A criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2003, e a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, mecanismos criados a partir do documento de Durban, são apenas dois exemplos do impacto da conferência para além da criação do sistema de cotas em universidades. A conferência impactou até mesmo a política externa brasileira com a criação do programa de ações afirmativas no Itamaraty.
Sant’Anna destaca ainda o caráter interseccional e transversal do documento. As discriminações de raça e gênero se articulam com outras categorias, como migração, meio ambiente, religiosidade, indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais. Para ilustrar essas intersecções, ela cita trecho do texto em que os Estados são chamados “a solucionarem os problemas de propriedade de terras ancestrais habitadas por gerações de afrodescendentes e a promoverem a utilização produtiva da terra e o desenvolvimento abrangente destas comunidades, respeitando sua cultura e suas formas específicas de tomada de decisão”.
É inegável que a participação brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo foi um marco para as pessoas negras no Brasil. Ao mesmo tempo, o contexto brasileiro contemporâneo — marcado por diversas tentativas de retrocesso aos direitos conquistados — deixa evidente que o chamado para “arregaçar as mangas e colocar a mão na massa”, feito há 20 anos por Sant’Anna, continua válido para setores da sociedade civil comprometidos com o antirracismo.
A III Conferência Mundial contra o Racismo é um dos temas da Assembleia Geral da ONU, que teve início nesta segunda-feira (13), em Nova Iorque. No dia 22 de setembro, será realizado um encontro para comemorar o 20º aniversário da adoção da Declaração e Programa de Ação de Durban sobre o combate global ao racismo e à discriminação. Entre os temas a serem tratatos estão antissemitismo, islamofobia, o combate ao ódio a asiáticos, o combate ao preconceito cotra afrodescendentes e a promoção dos direitos dos indígenas. A relatora especial da ONU sobre formas contemporâneas de racismo, Tendayi Achiume, usará seu relatório temático a ser apresentado na Assembleia Geral para destacar a relevância da Conferência de Durban e os desafios para a plena implementação de suas resoluções.
1) A ONU adota oficialmente o termo afrodescendente e deixa evidente que grupos espefícos sofrem com o racismo e a discriminação.
2) A discriminação racial é abordada de um modo interseccional e transversal, ou seja, existe o reconhecimento de que as opressões de raça se articulam com gênero, localização geográfica, posição social e outros fatores.
3) Afirma que os Estados têm papel central no enfrentamento ao racismo e chama os países a desenvolverem políticas específicas para negros nas áreas de saúde, educação, segurança, entre outras.
4) Considera a escravidão e o tráfico de escravos crimes contra a humanidade e requer reparação histórica.
5) Introduz no âmbito global o antirracismo como fator central no desenvolvimento dos países; virada conceitual que ocorreu graças a ampla participação de ativistas, representantes da sociedade civil e especialistas, em especial do Brasil.