Quilombolas têm cultura própria e o direito constitucional de conservá-la. Segundo dados preliminares do IBGE, existem 5.972 quilombos no Brasil, presentes em 1.674 municípios de 24 estados. Mas só 4% deles estão titulados. Se dependesse do presidente Jair Bolsonaro, seria bem menos. Ainda em campanha, o então candidato disse que não cederia “nem um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombolas”. Como governante, vem cumprindo com a promessa.
Durante a pandemia de covid-19, comunidades quilombolas tiveram que ir à justiça para conseguir proteção. Durante esse processo, conseguiram levantar os primeiros números referentes às comunidades, com o apoio de parceiros. “Essas parcerias são essenciais para fomentar, fortalecer, auxiliar e dar apoio nesse processo da visibilidade da importância dos quilombos”, acredita o antropólogo e quilombola pernambucano Antônio Crioulo, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
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Em 2022, a Conaq criou uma comissão responsável pela organização do primeiro Censo da população quilombola, que iniciou seus trabalhos em agosto. No mesmo mês, no dia 10, quilombos de todo o Brasil vão se reunir no evento Aquilombar, em Brasília, um ato político de denúncias contra os desmontes das políticas públicas e das violências impetradas contra a população quilombola.
Em conversa com a Conectas, Crioulo fala sobre os desmontes dos últimos anos e a importância da cultura das populações quilombolas para o Brasil de hoje.
Antônio Crioulo – O objetivo é dar visibilidade às comunidades quilombolas, mas também às nossas pautas de luta, que são a regularização fundiária, o respeito ao nosso jeito diferenciado de viver e o respeito aos nossos conhecimentos, marcando território nesse e nos próximos governos.
Antônio Crioulo – A primeira coisa é entender que esse governo foi eleito com a proposta de fragilizar as políticas relacionadas aos direitos humanos e aos direitos das comunidades tradicionais. Já na campanha, Bolsonaro deixou muito nítido que isso era o que ele queria, dizendo que não cederia um centímetro de terra para comunidades quilombolas. Então, sabíamos que nossas demandas seriam, no mínimo, ignoradas. Mas ele fez mais do que isso. Além de ignorar, também tirou todo o recurso previsto para regularização fundiária. Hoje não tem recurso para fazer a regularização de jeito nenhum no Brasil. O que temos conseguido é através de ajuizamento. O governo tem fragilizado todas as ações que fortalecem nossa vida e os nossos quilombos.
Antônio Crioulo – Tivemos três portarias [parte do processo de regularização], mas elas foram feitas por demanda judicial, não por iniciativa do governo. Como falei, a primeira coisa que o Bolsonaro fez foi tirar os recursos, e sem recurso não há regularização fundiária. Por exemplo, a previsão orçamentária para o próximo ano não passa de R$ 400 mil. Hoje, no Brasil, temos em torno de 6 mil comunidades quilombolas. Sejamos sinceros, com o preço que as coisas estão, com R$ 400 mil, não dá para fazer a regularização nem de um percentual pequeno.
Antônio Crioulo – As comunidades quilombolas não existem sem seus territórios. Para a gente, a Mãe Terra é o que nos dá certeza da existência. Também queremos a terra para cuidar, para produzir, para garantir o sustento das nossas famílias, com a certeza de que precisamos preservar para que as próximas gerações tenham esse espaço garantido para continuar vivendo.
É uma visão totalmente diferente do capitalismo, que busca extrair cada vez mais da terra, acabando com todos os recursos possíveis. Nesse sentido, temos uma visão contrária. Para proteger, precisamos ter acesso ao território, e o que esse governo fez foi o contrário: incentivou o acesso dos fazendeiras às armas, derrubou leis de preservação ambiental, fazendo com que o grande latifundiário avançasse sobre as nossas poucas terras.
Antônio Crioulo – O papel da Fundação Cultural Palmares é fazer o acompanhamento jurídico e a certificação das terras quilombolas, quem é responsável pela parte de regularização é o INCRA. Na FCP, tivemos essa pessoa que também tentou fragilizar as bases legais de todas as maneiras, mas isso não foi só na FCP. No INCRA, por exemplo, o setor que trata da regularização foi tomado por ruralistas. Não é que nós somos oposição ou situação, mas nós temos uma visão sobre a importância do território e os ruralistas têm outra. Não tem como avançar, não tem nem como discutir porque não há uma abertura por parte desse governo para dialogar, muito pelo contrário, só temos recebido ataques e perseguições de nossas lideranças.
Antônio Crioulo – A pandemia teve momentos muito diferentes. No começo, ninguém sabia o que fazer, não tinha vacina. Começamos a nos apegar nas nossas rezas, com as plantas, com os conhecimentos tradicionais. Nossas crenças ajudaram muito, ao menos, a consolar as dores daqueles que estavam morrendo. Não posso afirmar que salvaram vidas, mas ajudaram muito as famílias a não entrarem mais ainda em um processo de depressão, num momento em que o governo nos ignorava. Tentávamos fazer bloqueios para que não entrassem nas comunidades, e os governos utilizavam a estrutura policial para quebrar nosso bloqueio. A gente tentando se isolar e os poderes governamentais trabalhando contra a nossa vida. Esse foi o primeiro sentimento que tivemos.
Antônio Crioulo – Depois, tivemos o cadastro das pessoas para receber o auxílio emergencial. Foi um problema porque a grande maioria das comunidades não tinha acesso à internet, e precisava de um celular e um chip para fazer o cadastro. Quem tinha isso eram as lideranças quando iam para a cidade, mas cada chip só podia ser usado uma vez. Isso foi bem difícil em um segundo momento.
Depois, veio a questão da insegurança alimentar. Nem as pessoas que tinham recursos conseguiam comprar comida, porque algumas comunidades eram isoladas e o meio de transporte não era adequado para que as pessoas se deslocassem para a cidade de forma segura, e, mesmo quando conseguiam chegar, os valores eram muito altos. Ficou insustentável garantir a questão da alimentação para o nosso povo. Se tivéssemos os territórios regularizados, poderíamos produzir nossos alimentos, mas nem isso tinha.
E aí veio a questão da vacina. Os quilombolas entraram com uma ADPF no STF [ADPF-742: Covid-19 nos quilombos] para garantir o direito de se vacinar como público prioritário, porque vivemos em coletividade. Só tivemos acesso à vacina por ordem judicial. A partir disso, o índice de morte diminuiu.
Antônio Crioulo – Os responsáveis pelo levantamento dessas informações fomos nós mesmos, porque não existia uma política que nos atendesse, não tinha informação em lugar nenhum. Graças à ADPF, hoje, temos um banco de dados que apresenta pelo menos um número superficial da população quilombola, do público entre 18 anos e 60 anos. Nesse processo, uma comissão da Conaq construiu o Censo Quilombola, em parceria com o IBGE e ONU, que passa a ser aplicado em agosto de 2022.
Antônio Crioulo – São informações que o governo leva em consideração para efetivar as políticas públicas, então, a partir desses dados, teremos força para lutar junto ao governo, com informações quantificadas sobre a população. Mas sabemos que, infelizmente, o Censo não vai conseguir fazer o levantamento de toda população quilombola. Primeiro, por causa do racismo estrutural, que faz com que muitas pessoas quilombolas não se identifiquem como tal, por vergonha ou pressão externa. Outro ponto é a população quilombola que está em trânsito, aqueles que precisaram sair dos quilombos para trabalhar na cidade. Não conseguimos incluir essas pessoas.
Antônio Crioulo – Nós avaliamos que, hoje, muitas pessoas perderam a noção ou não têm consciência sobre o seu papel na sociedade, do porquê estão nesta passagem terrestre. Se as pessoas pudessem refletir sobre isso, iriam compreender que as comunidades quilombolas estão cumprindo parte de sua missão, que é cuidar da Terra e garantir que as próximas gerações tenham um futuro, não só os quilombolas. Quando a gente preserva uma nascente de água, essa água vai ser pra todo mundo, quando a gente preserva as plantas para que tenha oxigênio, isso é pra todo mundo. Quando a gente preserva o território, não permitindo que as grandes empresas entrem com a monocultura, é porque entendemos que nós temos que produzir para alimentar o povo, não ter uma produção desenfreada sem respeitar o território.