O Estado de São Paulo não é qualquer um no mapa do sistema brasileiro: os presídios paulistas abrigam, hoje 35% de toda a população carcerária do país, que é a quarta maior do mundo atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. O governo estadual tem sob sua custódia um contingente de mais de 220 mil pessoas – número apenas um pouco menor que a soma de todos os presos do México.
Não é trivial, portanto, a falta de um órgão na administração paulista para monitorar e combater a tortura, que segundo a ONU acontece de maneira “generalizada” nos presídios do país. A ideia não é nova: pelo menos desde 2011, organizações de direitos humanos pressionam o Estado pela criação de um Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, nos moldes do Mecanismo Nacional criado em 2013 a partir da sanção da lei 12.847 pela então presidente Dilma Rousseff.
Esses órgãos são compostos por especialistas independentes e com acesso livre a qualquer local de privação de liberdade e estão previstos no Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ratificado pelo Brasil em 2007. A partir de inspeções, os membros do mecanismo podem solicitar a instauração de inquéritos, fazer perícias, elaborar relatórios, sistematizar dados e sugerir políticas públicas.
Em diversas oportunidades, a ONU reiterou ao Brasil a necessidade de complementar o mecanismo nacional, que funciona com apenas 11 peritos, com mecanismos estaduais. Só assim, sustenta a entidade, seria possível garantir a cobertura de todo o sistema prisional.
À mesma conclusão chegaram os membros da Comissão Nacional da Verdade. Em seu relatório final, publicado em dezembro de 2014, os comissionados recomendam a criação de mecanismos estaduais para garantir a efetividade do sistema nacional de prevenção e combate à tortura.
Hoje, já são nove os Estados que promulgaram leis específicas para a criação desses órgãos: Alagoas, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Rio de Janeiro e Rondônia. O governo paulista, no entanto, tem se mostrado impassível diante do desafio de acabar com a prática no Estado – e o imobilismo não é de agora.
Em 2012, organizações e entidades como a Conectas, a Pastoral Carcerária, a Defensoria Pública, o Conselho Regional de Psicologia, a ACAT e a Práxis se organizaram ao redor do Grupo de Trabalho instituído pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania para aprimorar uma minuta de texto de lei apresentada ao Estado em 2011.
As reuniões foram abandonadas pelo governo em março de 2013 após um parecer da PGE (Procuradoria-Geral do Estado) afirmar que a criação do Mecanismo Nacional deveria preceder a criação do Mecanismo Estadual. Apesar de ignorar exemplos como o do Rio de Janeiro, que desde 2010 possui um órgão próprio, a Secretaria de Justiça acolheu o argumento da PGE e inviabilizou todas as tentativas por parte das organizações envolvidas de retomar o diálogo.
Em agosto daquele ano, com a sanção presidencial da lei 12.847, o governo paulista ficou sem subterfúgios. Mostrando que o problema é antes de tudo político, e não técnico, o governo de Alckmin ignorou a carta aberta enviada por entidades de direitos humanos pedindo o encaminhamento do projeto para a Assembleia Legislativa.
Com o bloqueio no diálogo junto ao Executivo estadual, em setembro de 2014 a minuta do texto foi repassada ao então deputado estadual Adriano Diogo (PT), que apresentou o projeto de lei à Assembleia Legislativa paulista. O texto já recebeu parecer favorável das comissões de Constituição, Justiça e Redação (CCJR), de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania e das Questões Sociais (CDD) e de Finanças, Orçamento e Planejamento (CFOP).
Na última segunda-feira (26), Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, 13 organizações da sociedade civil e órgãos como a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal apresentaram um manifesto conjunto demandando a criação do Mecanismo Estadual.
“Sabemos que a violência e a tortura ocorrem especialmente em locais de custódia, onde não é possível observar e monitorar violências praticadas no interior desses espaços. Com essa dimensão de pessoas em privação de liberdade, faz-se urgente que São Paulo crie órgãos referenciais na prevenção e combate à tortura”, afirma o documento.