Familiares de pessoas presas – incluindo mulheres gestantes, idosas e bebês de colo – sofrem revistas manuais dentro de seus orifícios genitais quando visitam parentes no sistema carcerário brasileiro. A prática, que inclui ainda nudez completa, agachamentos forçados e revistas manuais, é conhecida como “revista vexatória” e foi relatada hoje pela Conectas amanhã aos países membros do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, reunidos para a 25ª sessão ordinária do órgão, em Genebra, na Suíça. A organização pedirá ainda à ONU que o Brasil seja instado a pôr um fim imediato a esta prática.
“É até difícil para um público estrangeiro entender como é possível que isso exista no Brasil e seja realizado regularmente, sem nenhum constrangimento, por agentes do Estado”, disse a advogada do Programa de Justiça da Conectas Vivian Calderoni, uma das expositoras no evento paralelo, organizado em conjunto pela Conectas, Rede de Justiça Criminal, Cels (Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina) e Humanas, do Chile.
“Se consideramos que cada um dos quase 500 mil presos do País vêm de uma família com pelo menos 3 pessoas, estamos falando de um tratamento degradante que vitima hoje ao redor de 1,5 milhão de brasileiros. Trata-se de uma das violações de direitos humanos mais extensivas, reiteradas e institucionalizadas de que se tem notícia”, completou Vivian.
A “revista vexatória” é feita sob pretexto de barrar a entrada de drogas, chips de celular e outros itens proibidos nos presídios. Pesquisa realizada pela Rede de Justiça Criminal, da qual Conectas faz parte, descobriu, no entanto, que a afirmação não se sustenta. Com base em documentos oficiais fornecidos pela própria Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, constatou-se que apenas 0,03% dos visitantes carregavam itens considerados proibidos. Em nenhum dos casos registrou-se a tentativa de entrar com armas. A pesquisa levou em conta dados coletados pelo governo nos meses de fevereiro, março e abril dos anos 2010, 2011, 2012 e 2013.
“É evidente que esta prática abusiva é usada como mais uma forma de punição contra os presos, estendendo a pena a pessoas que nunca sofreram qualquer condenação. Isso nunca favorecerá a reintegração do preso à sociedade. Pelo contrário, alimenta uma cadeia de indignação, rancor e ódio”, disse Vivian.
Expositores da mesa
O relator da ONU para Tortura, Juán Mendez, alertou para o fato de as revistas íntimas se caracterizarem como uma prática “humilhante e degradante” ou até mesmo como “tortura, quando conduzidas com uso de violência”. O relator disse que as buscas feitas em corpos devem ser conduzidas de maneira respeitosa e sem humilhação, apenas quando não exista alternativa. Mendez reconheceu a dificuldade de balancear imperativos de segurança com o respeito aos direitos, mas foi claro sobre o fato de que nenhuma prática pode violar a dignidade humana.
Barbara Bernath, da Associação Para a Prevenção da Tortura, de Genebra, fez diferenciações entre revistas legais e revistas abusivas. Para ela, quando a pessoa não é revistada por alguém do mesmo gênero, isso pode caracterizar abuso e mau trato. O mesmo acontece se mais de duas pessoas estão envolvidas no procedimento, o que aumenta o constrangimento e a humilhação. Ela reforçou que deve haver respeito à intimidade e que as revistas devem ser feitas em locais que tenham privacidade. Leia o documento feito pela Associação Para a Prevenção da Tortura, baseada em Genebra, sobre revistas abusivas. Por fim, Barbara lembrou que mulheres e crianças são especialmente vitimadas por essa prática. Isso é ainda mais grave quando a mulher revistada tem um passado que envolva abuso sexual.
Anabella Museri, do Cels (Centro de Estudos Sociais e Legais da Argentina), participou por vídeo conferência. Em sua exposição, ela lembrou que, além da revista abusiva nos corpos, agentes carcerários também destroem roupas, alimentos e medicamentos trazidos pelos familiares. Anabella contou que muitas revistas são feitas nos presos durante a noite ou a madrugada, com uso de violência. Ela também disse que, por causa das revistas abusivas, muitos presos preferem que seus parentes, especialmente esposas e filhas, não façam visitas nos locais de detenção, para evitar expor-se a estas revistas. Isso aumenta ainda mais o isolamento do preso.
Vivian Calderoni, advogada da Conectas, leu o relato de uma cidadã brasileira submetida a revista vexatória ao visitar um familiar no sistema prisional. Ela apresentou uma pesquisa feita pela Rede de Justiça Criminal para saber quantos itens proibidos foram encontrados com pessoas que visitam presos. Com base em documentos oficiais fornecidos pela própria Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, constatou-se que apenas 0,03% dos visitantes carregavam itens considerados proibidos. Ela explicou que o número de objetos encontrados com os presos é quatro vezes superior ao número de itens apreendidos com familiares, o que prova que os itens entram de outra forma, que não pelos parentes em dia de visita.
Relatos
Conectas e a Rede de Justiça Criminal recebem relatos de pessoas que passaram pela revista vexatória, como os que contêm os trechos abaixo:
“A funcionária já me olha dos pés a cabeça com desprezo e fala: já sabe o que tem que fazer. Passo no detector com roupa, sem sutiã, entra para a sala da revista com mais 3 ou 4 meninas, tiramos toda a roupa. E começa a sessão de tortura: ‘abaixa, faz força, tá fechado, faz forçaaa, tosse, abaixa de novo, põe a mão e abre, não tô vendo’. O que ela quer ver? Meu útero? Pra que tudo isso? E a tortura volta: encosta na parede, deita, abre mais a perna e faz força como se fosse ter um bebê. Como assim? Eu não tenho filho, não sei como é essa força, mas faço tudo isso. Mas nada é suficiente para as funcionarias e então chamam outras para me revistar e começa tudo de novo, aí nervosa eu já começo a chorar, então vem no meu psicológico: tá chorando porquê? Vai, põe a mão e tira a droga, tira porque eu sei que tem. A minha resposta é: tô cansada desde ontem aqui na porta da cadeia, só quero ver meus familiares, não tô com droga dentro de mim.”
“Sou tratada como carne em abate, recebendo das agentes palavras de insulto e descaso, tenho que abaixar de frente três vezes, que é o estabelecido pelas normas do presídio, mas não é isso o que acontece, porque ela me faz agachar dependendo da agente de 5 a 6 vezes, afirmando que não está conseguindo visualizar. Aí vem a pergunta visualizar o quê? Sou uma trabalhadora e me sinto totalmente inútil perante essas situações, porque mesmo conhecendo os meus direitos e as leias a hierarquia prevalece e dentro das unidades quem ditam as regras são eles.”
“Após eu ter feito o procedimento, a funcionaria pegou minha ficha, pediu para que eu me vestisse e me levou no banheiro do CDP, encostei-me à parede e fiz força por 20 minutos. Abri, passei papel higiênico, tossi. Aos prantos eu pedi pelo amor de Deus e as informei que eu não estava com absolutamente nada. Mesmo assim o questionário não acabou.”
Pronunciamento
Além do evento paralelo, na sexta-feira, dia 14, Conectas levou o debate sobre revista vexatória à plenária do Conselho de Direitos Humanos. Em seu pronunciamento oral, Vivian Calderoni afirmou que “revistas vexatórias são uma prática inaceitável que constitui tratamento inumano e degradante, além de infligir sofrimento físico e mental”. “Mesmo assim, elas são executadas regularmente no Brasil, violando o princípio da dignidade humana.” Calderoni encerrou a exposição urgindo o Conselho a apoiar a aprovação do projeto de lei 480/2013, que acaba com esse tipo de revista no País.
Assista o pronunciamento oral sobre revista vexatória:
Série de denúncias
A exposição dos casos de “revista vexatória” acontece na mesma semana em que Conectas denunciou as mais de 60 mortes ocorridas no presídio maranhense de Pedrinhas, pedindo que o relator da ONU para Tortura, o argentino Juan Mendez, realize visita ao Brasil.
Conectas – que possui status consultivo junto às Nações Unidas – combina as denúncias internacionais com uma forte ação no âmbito interno. Advogados da organização realizam visitas regulares a presídios – a mais recente ocorrida no início deste mês, no Presídio Feminino do Butantã, em São Paulo, e, antes desta, ao presídio de Pedrinhas, no Maranhão –, transmitindo suas constatações às autoridades responsáveis. No caso de Pedrinhas, a organização obteve, juntamente com as organizações parceiras Justiça Global e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, medida cautelar que força o governo a tomar providências para pôr um fim às violações de direitos humanos no local.
Pedrinhas
Na segunda-feira, dia 10, Conectas, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e Justiça Global fizeram um pronunciamento oral no Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre as mortes e outras violações ocorridas no presídio de Pedrinhas, no Maranhão.
Além das decapitações e mais de 60 mortes registradas no local desde o início do ano passado, Conectas falou também das mazelas do sistema prisional brasileiro como um todo, chamado atenção para a incapacidade dos entes públicos em fazer frente às violações. A advogada da Conectas, Vivian Calderoni, relatou as mortes e decaptações, dizendo que a situação continua crítica no local. “A resposta dada pelo governo foi militarizar o presídio”, disse.
Em outro pronunciamento oral, realizado na sexta-feira, dia 14, o representante da Conectas em Genebra, Paulo Lugon, ressaltou a importância da revisão das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos – documento elaborado em 1956 para garantir a dignidade, o acesso à saúde e o direito à defesa da população encarcerada.
A quarta reunião do grupo de especialistas que lideram o processo deveria ter acontecido em Brasília em fevereiro, mas foi desmarcada pelo Planalto com menos de uma semana de antecedência, no auge da crise de Pedrinhas.
Lugon recordou que muitos países se apoiam exclusivamente nas Regras Mínimas para estabelecer seus padrões de gestão de presídios e pediu comprometimento dos membros do Conselho nas próximas rodadas de negociação.