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19/06/2017

Nova Brasília: julgamento histórico

“Ser condenado é feio, mas descumprir é vergonhoso”, diz pesquisador sobre condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos



Nos anos de 1994 e 1995, a favela Nova Brasília, que faz parte do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, foi palco de duas violentas chacinas. A primeira, em outubro de 1994, deixou 13 mortos e três vítimas de violência sexual. Em maio de 1995, mais 13 pessoas foram assassinadas. Nas duas ocasiões, todas as suspeitas recaiam sobre agentes do Estado, mas as investigações nunca foram devidamente conduzidas e ninguém foi punido.

Vinte anos depois, em 2015, os casos chegaram à Corte Interamericana de Direitos Humanos como resultado de uma ação do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e do Iser (Instituto de Estudos da Religião). Em maio deste ano, a Corte emitiu uma sentença na qual ordenou que o Estado brasileiro conduza a devida investigação dos homicídios. Também determinou que a apuração específica dos casos de violência sexual seja feita a partir de uma perspectiva de gênero e que as famílias das vítimas recebam reparação.A Corte decidiu, ainda, que as expressões “oposição” e “resistência” não sejam mais utilizadas nos registros de homicídios decorrentes de intervenção policial até que uma investigação com peritos independentes confirme a versão. No Brasil, esses termos são rotineiramente utilizados em boletins de ocorrência para ocultar abusos por parte dos agentes do Estado, culpabilizando vítimas e limitando as investigações.

Em entrevista exclusiva à Conectas, Pedro Strozenberg, pesquisador do Iser que acompanhou de perto a tramitação do caso, comenta as implicações da sentença da Corte Interamericana:

 

Conectas – Qual é a importância da decisão da Corte?

Pedro Strozenberg – Esta sentença carrega um simbolismo histórico muito importante, pois reconhece a não realização de Justiça em matérias de execução policial. Na essência, a Corte alerta para a responsabilização do Ministério Público e do Judiciário em sua omissão ou insuficiência na apuração e no tratamento de violações cometidas pelas forças de segurança do Estado.

Dois elementos principais merecem destaque na decisão: primeiro, o fato de relacionar de maneira explícita a violência policial como uma grave violação dos direitos humanos no país; segundo, o fato de expor de maneira explícita o acovardamento histórico dos mecanismos de controle externo das polícias e o tratamento degradante aos familiares e vítimas desta violência policial.

De alguma maneira, a sentença evidencia um sistema perverso que trata as mortes de jovens negros da favela, por agentes do Estado, como algo plausível e natural, como se a morte fosse a regra e não a gravosa exceção.

 

O que acontece se o Brasil não cumprir a decisão da Corte?

Pode sofrer sanções políticas, mas não consigo nem imaginar que o Brasil vá passar este recibo. Ser condenado é feio, gera constrangimento, mas descumprir é vergonhoso. É como dizer que o governo reconhece oficialmente a execução como prática compatível com sua agenda pública. Seria passar um recibo de violador. Espero que não tenhamos um ministro das Relações Exteriores ou ministro da Justiça disposto a assumir este papel indigno.

 

Essa decisão abre precedentes para que novos casos de violência policial e execução sumária sejam devidamente investigados?

A condenação do Brasil produz um grande constrangimento no contexto internacional. Apesar do episódio ter ocorrido no Rio de Janeiro, a obrigação em reparar é do governo nacional e espera-se que isso traga uma maior responsabilidade em relação ao tema da letalidade. A Corte estará atenta ao que se passa no Brasil, de forma que esperamos que o caso de Nova Brasília possa ser um marco na virada desta página repugnante da democracia brasileira. Não acho que a Corte abra precedentes, mas aumenta o controle externo da polícia e do sistema de Justiça.

 

O que muda a partir da recomendação sobre autos de resistência?

Este é um ponto importante, pois é mais do que um debate semântico. A sentença determina uniformidade e a exclusão definitiva das expressões “oposição” e “resistência” dos registros de homicídios decorrentes de intervenção policial. A questão principal é que as mortes decorrentes de intervenção policial não sejam consideradas, a priori, decorrentes de confronto legítimo e que seja transferida tal consideração para o final do processo investigativo, realizado por peritos independentes e unidades especializadas. Parece-me que a Corte teve precisão na determinação, em seu conteúdo simbólico e reflexivo.

 

Qual é a mensagem que fica com essa decisão?

A sentença escancara uma parcela feia, mas real da história brasileira e latino-americana. Em torno de 60 mil pessoas são mortas a cada ano. Jovens, pobres e pretos, como estes que agora emprestam seus nomes para ajudar a mudar o cenário.

Em alguns Estados brasileiros as mortes cometidas por policiais ultrapassam os 25% do total oficial das mortes violentas. Não podemos conviver com este massacre cotidiano, é preciso interromper este ciclo. É preciso coragem e determinação política, uma combinação ainda rara na agenda pública brasileira. A decisão da Corte é um chamado de alerta ao Ministério Público e todo o Sistema de Justiça Criminal.

Pessoalmente, no entanto, parece-me que a mensagem mais forte desta decisão é a do reconhecimento emocionante dos familiares que conduziram este processo ao longo destes mais de vinte anos. Os familiares demonstraram sentimentos genuínos e foram capazes de partilhar sua dor e sua força. Conforme dito por uma das irmãs, os meninos “não tiveram chance de pagar pelo erro que eventualmente cometeram”. Será preciso dose de indignação, responsabilidade, transparência e participação nestes processos que virão.

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