O advogado, professor e militante de direitos humanos, Paul Chevigny, nos deixou na última semana. Em 1987 Paul e Bell Chevigny vieram pela primeira vez ao Brasil para elaborar um relatório sobre violência policial, sob os auspícios da Human Rights Watch e do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Bell era escritora e professora de literatura na Universidade do Estado de Nova York, mas com um longo engajamento com causas progressistas. Paul já era um reputado professor de direito criminal na Universidade de Nova York, que havia escrito Police Power, um clássico sobre controle da atividade policial nos Estados Unidos. Paulo Sérgio Pinheiro me designou, ainda estudante, para servir de tradutor nas andanças do casal pelo Brasil, me presenteando com um enorme privilégio.
Em 1964 o jovem Paul, educado em Yale e Harvard, abandonou uma promissora carreira de advogado em Wall Street, para fundar um escritório de assistência jurídica para a população negra do Harlen, após participar de uma missão de defesa dos direitos civis no Mississipi. Nos anos seguintes Paul Chevigny iria se transformar em um dos mais importantes e criativos advogados de direitos civis do país, como sustenta Aryeh Neier, ex-presidente da Open Society Foundation, em seu livro Taking Liberties: four decades in the strugle for rights. Paul dedicou-se especialmente às questões da violência policial e da liberdade de manifestação e expressão, desenvolvendo estratégias pioneiras de litígio voltadas a conter o uso indiscriminado da força no final dos anos sessenta. Advogou para os Black Panters, para jovens que queimavam a bandeira e se recusavam a pagar tributos em protesto contra a guerra no Vietnã, assim como para presos comuns e vítimas da violência policial e prisional.
Paul Chevigny exerceu uma enorme influência na montagem e concepção dos programas de litígio da Conectas, assim como sobre os diversos estudos sobre abuso do poder coercitivo pelas forças policiais realizados pelo NEV/USP. Esteve no Brasil inúmeras vezes. De forma generosa partilhou suas ideias e ouviu com enorme atenção os nossos planos. Jamais se colocou como detentor de conhecimento e autoridade, apenas como colega profundamente compromissado. Realista, levantou todas as dificuldades que decorreriam da implementação de um programa de litígio estratégico na Conectas. Ao terminar um dia de trabalho bastante pessimista, perguntei se deveríamos adiar a ideia e ele respondeu: “claro que não! Isso tudo é urgente. Se vocês não fizerem, quem irá fazer? Apenas tome cuidado com o bem-estar dos mais jovens”, olhando para Eloisa Machado, recém-saída da Faculdade.
Mas a influência de Paul Chevigny não se deu apenas no plano da advocacia estratégica, mas também na postura em relação aos direitos humanos. Paul e Bell formavam um casal excepcional. Seu apartamento na Rua 112 em Nova York reunia poetas, cinematógrafos, jornalistas, militantes e amigos de muitos países. Eram rigorosamente liberais, no sentido americano do termo. Defendiam uma sociedade justa, inclusiva, mas onde as pessoas pudessem também exercer sua liberdade. Sempre militou por uma política não seletiva no campo dos direitos humanos, assim como por um respeito pelas instituições que muitas vezes criticava. Jamais deixou de ter uma forte interlocução com as polícias. Em sua análise as polícias apenas reproduziam a violência, a segregação e os preconceitos da própria sociedade. Para ele era necessário promover reformas e capacitar as polícias para que se aproximassem de sua função essencial que é aplicar a lei de forma rigorosa e imparcial. A polícia era essencial para enfrentar o crime. Mas não deveria ser a única responsável. Em 2007 eu estava dando um curso de direito e desenvolvimento na Universidade de Fordhan. Levei Paul para uma das aulas, que tratava da questão do Estado de Direito nas Américas. Um aluno perguntou quem tinha sido o maior responsável pelo declínio da violência em Nova York: o chefe de polícia, que reformou a polícia, o prefeito que passou a implementar uma série de políticas para manter os jovens na escola, ou o presidente com suas políticas de emprego, para os mais pobres. Resposta de Paul: “provavelmente os três. Isso sem falar na própria mudança da economia do crime. A supressão do crack pela cocaína foi essencial…”. Foi essa visão holística que permitiu avanços na pacificação social.
Paul também exercitava uma despretensão militante. Seu obituário no New York times, o apresenta como uma espécie de detetive Columbo, que fazendo perguntas e colocações aparentemente ingênuas, estava sempre à frente de seu interlocutor, sem que esse ficasse ofendido ou mesmo percebesse. Lembro de um debate na Universidade de Nova York sobre seu livro The Edge of the Knife, que compara os esforços de controlar a violência policial nos Estados Unidos, México, Argentina, Haiti e Brasil. A uma determinada altura, um aluno, de forma bastante contundente aponta um erro no livro. Paul agradece o aluno e diz que corrigirá o texto numa próxima edição. Alguns minutos depois, respondendo outra pergunta, interrompe seu raciocínio, vira-se ao rapaz e diz: “mas com um erro desses, o livro jamais chegará a segunda edição”, para surpresa do auditório.
Essa postura despretensiosa sempre gerou certo incômodo entre seus colegas. Nos anos 2000, Paul decidiu criar uma clínica de direitos humanos com alunos e jovens professores. Alguns colegas manifestam seu desconforto, alegando que ele não tinha a devida formação no campo do direito internacional dos direitos humanos, embora fosse um notável advogado de direitos civis. Paul não teve dúvidas, passou a frequentar as aulas de direito internacional dos direitos humanos, exigindo fazer as provas finais, para constrangimento de seus colegas. Concluídos os cursos, abriu sua clínica.
Paul também era amante de Jazz. Sua relação com a música tornou-se mais estreita quando, nos anos 1980, promoveu, representando artistas negros, duas ações contra a cidade de Nova York, que que cerceava a liberdade de músicos negros expressarem a sua arte em determinadas regiões da cidade expressarem a sua arte em determinadas regiões da cidade. Dessa experiência surgiu um outro clássico da sociologia do direito, Jazz and the Law, escrito por Paul. A relação de Paul com a arte não para por aí. Era exímio sapateador. Sua única exigência quando viajava era um espaço para sapatear.
Paul e Bell deixam Katy em Blue, grandes livros, além de um legado de compromisso com a justiça social e os direitos humanos. Essa é uma nota para aqueles que não tiveram o privilégio de com eles conviver.
Texto escrito por Oscar Vilhena, fundador da Conectas e hoje membro do Conselho Deliberativo da instituição