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23/02/2021

“Não existe reparação justa sem participação de atingidos”

Em entrevista para a Conectas, Marina Oliveira, atingida e membro da Arquidiocese de Belo Horizonte, e Leticia Aleixo, da Cáritas Minas Gerais, criticam acordo bilionário entre o governo mineiro e a Vale sem participação de atingidos



No início de fevereiro, o governo do estado de Minas Gerais e a mineradora Vale fecharam um acordo bilionário de reparação pelo rompimento da barragem de Brumadinho, ocorrido há dois anos, e que deixou 272 vítimas (segundo contagem das famílias), entre pessoas mortas e desaparecidas, entre outros danos ambientais e patrimoniais. 

A um custo de R$ 37,7 bilhões, o acordo prevê programas de transferência de renda, reformas de escolas e UBS (Unidades Básicas de Saúde) dos municípios da bacia do rio Paraopeba, projetos de saneamento básico e até a construção de um rodoanel na região metropolitana de Belo Horizonte e melhorias no metrô. 

As negociações, entretanto, deixaram de lado a sociedade civil e os representantes das vítimas e afetados pelo desastre, que não enxergam na proposta suas principais demandas atendidas. 

Por esta razão, entrevistamos Marina Oliveira, moradora de Brumadinho e atingida pelo rompimento da barragem da Vale. Ela é coordenadora de projetos para as comunidades atingidas pela Arquidiocese de Belo Horizonte em parceria com a Cáritas Minas Gerais. Ouvimos também Letícia Aleixo, assessora técnica pela Cáritas Minas Gerais, que atua em projeto de apoio e fortalecimento das ações de articulação e incidência internacional das comunidades atingidas.

Ambas endossam as críticas de que o acordo não representa o modelo de reparação exigida pelas famílias das vítimas e afetados. “Quem melhor conhece o dano é quem sofre”, afirma Oliveira.

Leia a íntegra da entrevista a seguir: 

Marina Oliveira (à esq.) é moradora de Brumadinho e atingida. Ela é coordenadora de projetos para as comunidades atingidas pela Arquidiocese de Belo Horizonte em parceria com a Cáritas Minas Gerais. Letícia Aleixo (dir.) atua em projeto de apoio e fortalecimento das ações de articulação e incidência internacional das comunidades atingidas, também pela Cáritas Minas Gerais

Marina Oliveira (à esq.) é moradora de Brumadinho e atingida. Ela é coordenadora de projetos para as comunidades atingidas pela Arquidiocese de Belo Horizonte em parceria com a Cáritas Minas Gerais. Letícia Aleixo (dir.) atua em projeto de apoio e fortalecimento das ações de articulação e incidência internacional das comunidades atingidas, também pela Cáritas Minas Gerais.

Conectas – Quem representa os atingidos e qual a participação destes grupos no acordo de reparação fechado com o governo de Minas Gerais?

Marina Oliveira – Não houve representação ou participação direta das comunidades atingidas no acordo de reparação fechado com o governo de Minas Gerais. O Estado e as Instituições de Justiça dizem ser representantes legítimos dos atingidos e atingidas da bacia do Paraopeba nas negociações em razão das atribuições legais, mas como confiar num Estado completamente minério-dependente, que também tem responsabilidade na fiscalização da segurança dessas barragens e que, de certo modo, se beneficia diretamente do acordo firmado? Como confiar no Estado e nas Instituições de Justiça se o acordo foi construído de maneira sigilosa, sem que pudéssemos sequer conhecer o conteúdo discutido nas negociações? Por que não podíamos ter acesso às informações?

Conectas – O acordo atual repara adequadamente as pessoas atingidas?

Letícia Aleixo: O acordo foi elaborado em rodadas de negociações sigilosas e não contou com a participação das comunidades atingidas ou das comissões de atingidos formadas após o rompimento da barragem. O valor acordado entre as partes – cerca de 37 bilhões de reais – representou um “desconto” de aproximadamente 19 bilhões de reais para a empresa, se considerado o diagnóstico de danos calculados em 56 bilhões. E esse desconto, por sua vez, representa o lucro líquido que a empresa obteve no terceiro trimestre de 2020. Do valor global acordado, os 37 bilhões de reais, devem ainda ser descontados os gastos já efetuados, de cerca de 11 bilhões, o que, ao final, nos leva a um valor de aproximadamente 26 bilhões de reais.  Ainda é importante notar que o acordo trata de direitos difusos e coletivos, motivo pelo qual as partes celebrantes destacam que ele não interferirá nas indenizações individuais devidas aos atingidos e atingidas. No entanto, a inviabilização da participação e do controle social sobre o instrumento firmado – de interesse público, nota-se -, desconsidera o pressuposto de que a reparação deve, em primeiro lugar, respeito ao princípio da centralidade das vítimas e, ainda, a restituição dos direitos violados e a retomada de vida no mínimo em condições equivalentes ao que levavam. Para o governo, o acordo representa tanto movimentação de caixa em um cenário de Estado falido, quanto a realização de obras de infraestrutura de destaque político. Alguns dos projetos acordados, inclusive, são criticados por gerarem ainda mais impacto ambiental em Unidades de Conservação. Faltam mecanismos de transparência, participação e controle social. Ao ser anunciado como um ótimo acordo, a empresa passa uma imagem de “responsabilidade” e “quitação de obrigações devidas”, enquanto a situação não se altera concretamente para as famílias atingidas e tantas outras barragens seguem em risco de rompimento no mesmo estado, expulsando ainda mais famílias de suas casas. Com esse discurso, sua reputação cresce no mercado, assim como o valor das ações negociadas. A empresa também se beneficia do fato de que ficará encarregada da execução de alguns programas e obras, bem como com a extinção de algumas perícias judiciais que seriam realizadas com caráter independente, mantendo assim o controle sobre o processo de reparação. 

Conectas – Quais são as demandas das famílias das vítimas e dos atingidos para uma reparação justa?

Marina Oliveira – Em primeiro lugar, não existe acordo, nem reparação justa sem a participação dos atingidos e atingidas que tiveram suas vidas completamente alteradas pelo desastre-crime. Quem melhor conhece o dano é quem sofre. De nossa parte, as demandas são muitas e diversas. Podemos aqui listar as principais, que são o encontro dos corpos das 11 vítimas ainda desaparecidas, a responsabilização criminal dos envolvidos, o endurecimento da fiscalização ambiental de empreendimentos minerários, a descontaminação do Rio Paraopeba, reparação ambiental ao longo de toda a bacia, a garantia da segurança hídrica de toda a região atingida, a agilidade nos processos de reparação integral de todos os atingidos, a garantia de memória e dignificação das vítimas, a garantia de não repetição, a garantia de centralidade da vítima durante todo o processo de reparação, o acesso à informação e transparência nos processos de reparação, a garantia de assessoria técnica, auditorias, laudos técnicos e estudos científicos independentes referentes aos impactos socioambientais de toda a bacia do Paraopeba.

Conectas – Quais os caminhos ainda a se percorrer para a reparação e para evitar que novas tragédias do tipo voltem a se repetir?

Letícia Aleixo – Desastres como os ocorridos em Mariana e em Brumadinho apresentam impactos profundos e se perpetuam no tempo. As soluções, portanto, não são simples. Alguns pilares, porém, devem ser observados visando a reparação integral dos danos ocasionados. O respeito ao princípio da centralidade das vítimas é certamente um desses pilares. Para além, deve-se prezar pela restituição dos direitos violados, pela justa compensação dos danos, pela satisfação pública capazes de esclarecer as responsabilidades e aplicar as devidas sanções, por exemplo. Tudo isso dentro de um prazo razoável e sem que se abra mão ou se negocie direitos fundamentais. Em termos de medidas de não-repetição, precisaríamos falar mais – e adotar concretamente ações – para o fortalecimento dos processos de licenciamento ambiental, de segurança e fiscalização independente de barragens, de transparência ambiental e combate à captura regulatória, por exemplo.

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