Voltar
-
15/01/2015

Não é (só) a economia, chanceler

Artigo de Camila Asano para a Carta Capital



Por Camila Asano*

A política externa voltou aos holofotes nos primeiros dias do segundo mandato de Dilma Rousseff, após ter desaparecido durante o período eleitoral. A boa notícia é que a nomeação de um novo chanceler e o futuro da diplomacia nos próximos quatro anos conquistaram atenção considerável tanto nos meios especializados como em veículos de grande circulação. Mais do que isso, criou-se uma expectativa de que o Brasil voltaria a ser mais atuante internacionalmente.

No entanto, o protagonismo anunciado parece ter nome e sobrenome: promoção comercial. O novo ministro disse em seudiscurso de posse que “uma linha mestra da atuação do Itamaraty (…) será colaborar intensamente para abrir, ampliar ou consolidar o acesso mais desimpedido possível do Brasil a todos os mercados do mundo, promovendo e defendendo o setor produtivo brasileiro (…)”.

Não está errado fazer da diplomacia um instrumento para o desenvolvimento socioeconômico do país. Pelo contrário, essa é uma de suas funções. Mas, como em tudo, os fins não podem justificar os meios e há parâmetros que devem ser observados. No caso brasileiro, nossa própria Constituição os define: as relações internacionais devem ser regidas por determinados princípios, entre eles, pela “prevalência dos direitos humanos” (Art. 4º, II).

A atuação internacional do Brasil em 2015 deve ser mais assertiva na agenda global de direitos humanos. É possível dizer que todo e qualquer país possui um papel duplo neste campo. Por um lado, os países são “objeto” do sistema internacional dedicado à temática. Isso ocorre quando um país recebe críticas ou recomendações de outros ou de organismos internacionais, como por exemplo, no caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que recentemente emitiu uma medida provisória para conter as violações no presídio maranhense de Pedrinhas. O segundo papel desempenhado pelos Estados é de “ator global”, que se posiciona sobre distintas questões e negociações internacionais em curso na agenda de direitos humanos como, por exemplo, a crise humanitária na Síria.

Passemos em primeiro lugar às expectativas para 2015 considerando o Brasil como “ator global”, ou seja, que assume posições perante casos para além de suas fronteiras. As expectativas sobre o País são grandes, devido à condição de potência emergente dos últimos anos.

Uma das promessas para o ano que se inicia é a concretização do Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). É fundamental que em seus futuros financiamentos o banco exija que os Estados respeitem o direito ao consentimento livre, prévio e informado de povos indígenas e que o banco conte com critérios socioambientais e de direitos humanos consistentes com os mais altos padrões internacionais. Uma política responsável do Banco dos BRICS pode inclusive gerar impactos ainda mais positivos se estendida ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), cujo funcionamento todavia está longe de ser um modelo de transparência na gestão de recursos públicos.

Espera-se também um protagonismo responsável do Brasil na questão das transferências internacionais de armas e munições. O Brasil é o 4º maior exportador mundial de armas leves, segundo pesquisa do Instituto de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, e nossa indústria de produtos de Defesa vem conquistando mercados no exterior, com destaque para África e América Latina. Mas a expressiva participação no mercado internacional não é acompanhada de um controle transparente do destino e do uso dos armamentos que daqui saem. As diretrizes que hoje regulam a matéria estão previstas na Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar que, por sua vez, é documento de caráter sigiloso.

Podemos começar a reverter esse cenário em 2015 com a ratificação urgente do Tratado sobre Comércio de Armas (ATT, em sua sigla em inglês). O texto, que levou 17 meses para ser encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional, agora tramita na Câmara dos Deputados. O tratado cria variadas restrições à venda ou doação de armamentos para países perpetradores de genocídio, crimes de guerra, crimes contra humanidade e graves violações de direitos humanos. O ATT também coibirá desvios ilegais de armas ao conferir maiores responsabilidades aos Estados exportadores e importadores. O Brasil é assolado por mais de 53 mil mortes por arma de fogo por ano, sendo que muitas destas armas entraram ilegalmente em nosso território. Ou seja, o tratado deve contribuir para o País não ajudar a causar mais mortes, dentro e fora de seu território.

Outra agenda temática que merece atenção é a migração internacional. Desde 2010 há uma intensificação no número e diversificação das nacionalidades dos migrantes que vêm ao Brasil. Houve coerência do Estado brasileiro com seu discurso solidário ao não impedir, por exemplo, a entrada de migrantes haitianos e ao ter facilitado a obtenção de visto para sírios que desejem pedir refúgio aqui.

Essas duas medidas, vale lembrar, foram adotadas por resoluções específicas – praticamente remendos –, já que a legislação migratória brasileira atual é avessa à ideia de que migrar é um direito humano. Uma das principais falhas do Estatuto do Estrangeiro, vigente desde a ditadura militar, é que ele dificulta a regularização migratória. Ao impedir a regularização, nossa legislação torna o migrante mais vulnerável a abusos, como os casos de trabalho escravo que tanto nos indignam como envergonham. A adequação da legislação brasileira deve se dar por duas vias em 2015: adoção de uma nova lei migratória sob a lógica dos direitos humanos e a ratificação da Convenção da ONU sobre Direitos dos Trabalhadores Migrantes e suas Famílias.

Uma das tradições da diplomacia brasileira é a valorização do multilateralismo. Entretanto, a contribuição financeira do Brasil a organismos internacionais de direitos humanos, como à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), não é condizente nem com o discurso de valorização e tampouco com as dimensões de nossa economia. É baixa demais. O último aporte brasileiro à CIDH foi em 2009 e na quantia ínfima de 10 mil dólares (menos de 30 mil reais), sendo que a Argentina, apenas em 2013, fez uma contribuição de 400 mil dólares.

Ainda na seara multilateral, o Brasil terá que se posicionar em votações importantes na ONU. Como preparativo para a grande discussão global sobre política de drogas agendada para 2016 nas Nações Unidas, o Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU deve debater em 2015 a relação entre as atuais políticas de drogas e os impactos negativos nos direitos humanos. Dadas as dimensões no Brasil destes impactos, sobretudo no sistema carcerário, é fundamental que o País assuma liderança nas negociações dessa resolução em Genebra.

Em 2014, vimos como o protagonismo brasileiro na ONU pode ser crucial para o avanço em temas importantes, como o foi com a aprovação da resolução do CDH sobre orientação sexual e identidade de gênero. A atuação brasileira nesta agenda deve continuar firme e progressista em 2015. Para este ano também se espera uma atuação do Brasil no fortalecimento d?a regulação para as empresas e seu envolvimento em violações de direitos humanos. Duas agendas estão em curso e merecem maior compromisso do País: a melhoria do funcionamento do Grupo de Trabalho da ONU dedicado ao tema de empresas e direitos humanos ?criado em 2011 ?e o processo de criação ?um tratado vinculante na matéria.

O Brasil ainda se coloca como “ator” na agenda global por meio de suas relações bilaterais. Uma oportunidade valiosa são as visitas presidenciais e de chanceler a outros países e o recebimento de autoridades aqui no Brasil. Em meados de 2015 deve acontecer a visita de Rousseff aos Estados Unidos, cancelada em 2013 depois das revelações de espionagem. A cobrança pelo fechamento da prisão de Guantánamo teria de estar no topo da agenda da visita. O Brasil, a exemplo do Uruguai, deveria receber presos que estão mantidos em Guantánamo sem acusação formal e que foram liberados pelo governo americano. Há uma lista de nomes que já podem deixar o centro de detenção, mas dependem da oferta de acolhida de um terceiro Estado, já que muitos temem pela vida se voltarem a seus países de origem.

Ainda em seu discurso de posse, o chanceler Mauro Vieira disse que “não basta estarmos presentes no mundo, é preciso sermos atuantes”. A presença diplomática brasileira por meio de suas diversas embaixadas e demais representações diplomáticas é um recurso valioso. Pouco se conhece, no entanto, do trabalho realizado por elas. Seria importante que o governo brasileiro informasse qual o papel que estas embaixadas possuem na promoção e proteção de direitos humanos nos vários países em que estão presentes, sobretudo naqueles com registro de graves e sistemáticos abusos. Para citar dois casos, temos embaixadas em Teerã e Pyongyang e abstenções do Brasil em votações passadas na ONU em resoluções que trataram das situações tanto iraniana como norte-coreana geram questionamentos sobre o compromisso do Brasil com a agenda de direitos e liberdades nesses países. Espera-se que as informações sobre atuação das embaixadas constem do Livro Branco, documento que o Itamaraty prometeu divulgar ainda no ano passado, mas ainda não o fez.

Partindo para a dimensão do Brasil como “objeto” do sistema internacional de direitos humanos, outras expectativas emergem para 2015.

Espera-se uma postura mais construtiva do País diante de críticas, recomendações e decisões emanadas de organismos regionais e internacionais de direitos humanos, como os da ONU e OEA. A pura preservação da imagem internacional não deve ser o foco da atuação da diplomacia, como vimos, por exemplo, na reação do Brasil ao relatório do grupo de especialistas da ONU sobre detenções arbitrárias após visita ao País. Nessa ocasião, a resposta oficial ao relatório foi exclusivamente dedicada à correção de pontuais erros do documento, esquivando-se de responder à conclusão central o grupo de especialistas: a existência da cultura de encarceramento em massa no Brasil. Não é suficiente parecer bom, é necessário de fato o ser. Outro decepcionante episódio de 2014 foi a tentativa do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, de desqualificar a relatora especial da ONU para saneamento e acesso à água após receber críticas sobre a má gestão dos recursos hídricos no estado.

Interessante seria ver tanto o governo federal como os estaduais fazendo uso daquilo que é recomendado pelos órgãos internacionais especializados em direitos humanos para auxiliá-los na superação das mazelas que vivemos aqui. A poucos dias do fim de 2014 um importante (e tardio) passo foi dado. A Secretaria de Direitos Humanos do governo federal lançou um portal online onde as recomendações recebidas pelo Brasil de diversos mecanismos da ONU e OEA estarão disponíveis, bem como informações que auxiliarão qualquer um a saber o estágio de implementação de cada uma delas. Resta saber, ao longo de 2015, se o portal será usado como instrumento na elaboração de políticas públicas pelas diferentes instâncias do Estado brasileiro.

As cobranças para uma atuação internacional mais assertiva e responsável do Brasil em direitos humanos devem ser vistas como um desdobramento da ideia de que política externa é uma política pública, como toda e qualquer política deveria ser em um Estado Democrático de Direito. Acesso à informação é pilar para o controle democrático e preocupam os poucos avanços feitos pelo Itamaraty. Nem mesmo a Lei de Acesso a Informação Pública tem sido capaz de reverter sua opacidade, dado os vários pedidos negados a partir de justificativas questionáveis. Estas mostram que o ministério se vê imune à lógica de que a transparência é a regra e o sigilo, a exceção. A publicação do Livro Branco da Política Externa e a criação de um foro permanente e formal de participação social – que deveria ser em forma de um Conselho Nacional de Política Externa – são duas pendências do Itamaraty prometidas para 2014 e que sequer foram mencionadas no discurso de posse do novo chanceler. Cabe à sociedade continuar a pressão.


*Camila Lissa Asano, bacharel em Relações Internacionais e mestre em Ciência Política, ambos pela USP, e coordenadora de Política Externa da Conectas Direitos Humanos. Integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GRI.-R

Leia o original clicando aqui.

Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas