A situação da Justiça Militar no Brasil é tema de uma audiência pública na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), órgão ligado à OEA (Organização dos Estados Americanos) nesta terça-feira (15). A audiência acontece, em formato virtual, às 10h (horário de Brasília), com transmissão ao vivo pelo canal da comissão no Youtube.
A audiência no sistema de direitos humanos da OEA foi solicitada por Conectas, Justiça Global, IBAHRI (Instituto de Direitos Humanos, da International Bar Association), Terra de Direitos e IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).
Participam do encontro Thiago Amparo, advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas; Daniel Sarmento, advogado e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Claudemar Aparecido, advogado e militante do MST; e Vitor Santiago, morador da Favela da Maré que tornou-se vítima da ação de agentes do Exército durante a ocupação realizada em 2015. O Estado brasileiro também deve enviar uma comitiva para o evento.
Segundo as entidades, o espaço na CIDH servirá para a sociedade civil brasileira mostrar como a ampliação da competência e o uso dos tribunais militares no país oferecem riscos à vida de civis e à democracia, ferindo direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal e tratados internacionais.
De acordo com especialistas em segurança pública e no enfrentamento à violência institucional, os problemas da Justiça Militar estão relacionados ao fato de que esses tribunais extrapolam suas competências constitucionais e atuam para além da atividade estritamente militar.
“A justiça militar teria que julgar fatos que atingem estritamente bens jurídicos militares. Sua ampliação, além de inconstitucional, é aliada da impunidade quanto a crimes praticados contra civis, comprometendo o princípio da igualdade perante a Justiça e, portanto, a democracia brasileira”, ressalta Clarissa Borges, assessora de advocacy do IDDD.
Nesse sentido, duas questões se destacam. A primeira está relacionada com o julgamento de civis pelos tribunais da Justiça Militar. Essa prática aumentou substancialmente durante o período da ditadura militar (1964-1985) e, mesmo com o fim da sua competência para julgar crimes contra a segurança nacional, a tendência de expansão de julgamento de civis cresceu mesmo após a Constituição de 1988, em boa parte em razão do aumento da atuação das Forças Armadas em atividades de segurança pública.
O segundo ponto é que a Justiça Militar burla a competência do Tribunal do Júri e realiza julgamentos de crimes cometidos por militares no exercício de funções subsidiárias atribuídas às Forças Armadas, que envolvem a sua atuação na área de segurança pública, como as conhecidas GLO (operações de garantia da lei e da ordem).
Por conta disso, abusos e crimes contra a vida de civis cometidos por agentes de segurança pública e integrantes das Forças Militares correm risco de não serem investigados e julgados de forma transparente, causando um cenário de impunidade e violações de direitos, especialmente de moradores de favelas e periferias em todo país, sobretudo jovens negros, e trabalhadores do campo, locais onde GLO e operações policiais, por exemplo, são realizadas com pouco ou nenhum controle da sociedade.
“O atual cenário da Justiça Militar no Brasil não oferece à sociedade civil instrumentos legítimos de controle da atividade militar”, afirma Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. Para o advogado, “os tribunais geridos por militares não podem ser à parte da sociedade, com dinâmicas e regras estranhas à população e outras instituições jurídicas civis.”
De acordo com Cláudio Oliveira, advogado integrante do Setor de Direitos Humanos do MST-PR (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), “a Polícia Militar, historicamente, serviu como executora das violências arquitetadas por latifundiários e políticos poderosos com interesse na concentração fundiária. Agiam sob garantia de impunidade, pois envolviam a Justiça Militar para apurar os crimes cometidos contra camponeses sem terra. Um processo de impunidade institucionalizada”. Oliveira acrescenta que estas situações de abuso acontecem em grande parte nos momentos de despejos.
Alinhado à denúncia feito pelo movimento campesino, a assessora jurídica da Terra de Direitos, Camila Gomes, aponta que um dos objetivos da audiência é “visibilizar a relação existente entre a justiça militar e violência no campo e denunciar, a partir de exemplos concretos, que a justiça militar constitui uma de suas engrenagens. Isso porque ela opera como elemento central para assegurar a impunidade dos crimes contra defensores de direitos humanos no contexto da luta pelo direito à terra”, destaca.
De acordo com Eduardo Baker da Justiça Global, o aumento de julgamento de casos envolvendo civis é também uma consequência do emprego crescente das Forças Armadas em atividades típicas de segurança pública. “Quanto mais os militares passam a atuar como polícia, mais vemos civis nos bancos dos réus da Justiça Militar” disse. Para terminar, a co-presidente do Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association e ex-secretária-geral da Ordem dos Advogados da Suécia, Anne Ramberg, complementa que: ‘Existem várias ações de revisão inconstitucional contestando a expansão da jurisdição militar no Brasil, todas pendentes de julgamento pelo STF do Brasil e o IBAHRI se une a organizações de direitos humanos, entidades estatais e outros atores no Brasil que denunciam essa mudança. Instamos o Estado brasileiro a realinhar sua legislação doméstica com os padrões e normas regionais e internacionais de direitos humanos e garantir que os tribunais civis investiguem, processem e punam as violações dos direitos humanos”” finaliza.
A audiência na CIDH acontece ao mesmo tempo em que o STF (Supremo Tribunal Federal) debate o papel da Justiça Militar no Brasil. Seis ações sobre esta matéria tramitam na Corte. Uma delas é a ADI 5032 (Ação Direta de Inconstitucionalidade), apresentada, em 2013, pela PGR (Procuradoria Geral da República), que deve ser julgada pelos ministros do Supremo a partir do dia 23 de março. Esta ação está focada no uso dos tribunais militares para julgar agentes das Forças Armadas que cometem crimes no exercício de atividades militares atípicas, especialmente no âmbito da segurança pública, como é o caso da GLO.