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06/05/2013

Muito além do fim do Apartheid

O regime de segregação racial sul-africano terminou há 19 anos. Mas não significa que os direitos sejam plenos no país. Conectas conversou com Janet Love, ativista que participou da redação da primeira constituição pós-Apartheid



Quase dezesseis anos depois da primeira Constituição sul-africana pós-Apartheid, o país ainda vive conflitos relativos em direitos humanos e sofre para efetivar os direitos dos cidadãos em diferentes instâncias. Depois de passar 46 anos sob um ferrenho regime discriminatório, os sul-africanos testemunham, por um lado, o engajamento da sociedade civil na política e nas questões públicas, mas, por outro, a carência de acesso à justiça e aos direitos expressos na letra fria da Constituição.

Para discutir a evolução dos direitos humanos e da organização jurídica no país, Conectas conversou com a ativista Janet Love, diretora nacional do Centro de Recursos Legais (LRC, por sua sigla em inglês) e membro da Comissão de Direitos Humanos da África do Sul. Em 1974, ela envolveu-se com o Trade Union, movimento anti-apartheid, e com o Congresso Nacional Africano (CNA). Ficou exilada por dez anos e trabalhou clandestinamente durante quatro anos em regime secreto para o CNA. De 1991 a 1994, Janet trabalhou em negociações para o estabelecimento da Convenção para a Democracia na África do Sul. Tornou-se membro do parlamento em 1994. Também participou das negociações e rascunhos da Constituição da África do Sul e foi membro do Comitê da Assembleia Constitucional.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Janet concedeu em abril à Arlette Afagbegee, da Conectas.


Quais foram os maiores desafios na elaboração da Constituição Sul-africana?

O grande desafio na elaboração de um documento como esse é, antes de tudo, reconhecer que a nossa transição tinha como premissa garantir que houvesse uma clara ruptura com a velha estrutura de discriminação e injustiça do Apartheid, estabelecendo algo tão fundamentalmente diferente e novo e, ao mesmo tempo, criando a partir de algo novo sem cair num cisma revolucionário ou fundamental com o passado. Isso é um ato de equilíbrio muito difícil de atingir.

A segunda grande luta foi a elaboração de uma constituição que reconhecesse o imperativo de assegurar a transição de injustiça, discriminação, marginalização e pobreza para algo que realmente tivesse inclusividade, transparência e desenvolvimento como sua fundação. Havia questões específicas que necessitavam de uma abordagem que não tinha muito precedente histórico. Embora existam alguns países cuja constituição estipula muito explicitamente a importância tanto dos direitos sócio-econômicos e culturais quanto da estrutura de direitos civis e políticos, eles são em número muito limitados.

A terceira coisa foi a estrutura de governança no país, bem como a maneira em que a representação seria alcançada em uma nova democracia. O equilíbrio entre a representação direta e a representação proporcional, a possibilidade de haver níveis de governança que vão do nacional ao local, a necessidade de intervir em estruturas provinciais, a distribuição do poder, enfim, esses são pontos que causaram ampla discussão. Assim, a noção de governança cooperativa é inerente à nossa Constituição.

Então, quais as promessas que você considera que a Constituição sul-africana cumpriu e quais são as promessas que ainda têm de ser cumpridas?

A Constituição tem cumprido sua promessa de entregar não apenas um documento, mas um Estado com base nesse documento, em que as pessoas realmente têm um senso de propriedade e pertencimento. Isso não quer dizer que seja um Estado sem contestação, porque certamente há muitos desafios atrelados a ele. Porém, significa que é um Estado que as pessoas genuinamente enxergam como seu direito, como seu Estado. Isso é um progresso real, considerando a situação da qual viemos. Por isso, eu acho que a África do Sul testemunha um nível muito significativo do engajamento civil nas questões de governança. Em alguns países do mundo, é inconcebível dialogar com pessoas que são muito marginalizadas e que não se beneficiaram da Constituição, e esse diálogo com o governo aqui ocorre de uma maneira muito mais imediata do que em algumas democracias desenvolvidas. A Constituição estabeleceu uma base importante de engajamento e contestação em torno de nossa democracia e deu às pessoas a sensação de que a contestação pode, potencialmente, acontecer nos tribunais, mas também por meio de outras formas de debate político e de discurso e, se for necessário, de manifestações de vários tipos.

Assim, por um lado, vemos uma situação na qual as eleições e várias transições podem acontecer sem grandes ameaças aos ganhos que têm sido feitos, mas, por outro lado, a promessa da Constituição em si não foi cumprida para muitas pessoas, por isso ainda está em um estágio delicado. Além disso, a Constituição prevê a realização progressiva e a perpetuação de qualquer direito sobre a Constituição, seja o direito à saúde ou à educação. A realidade é que o conteúdo absoluto desses direitos é algo que será sempre um alvo em movimento e que é inerente à noção de realização progressiva.

E quais são as principais questões e desafios de direitos humanos que a África do Sul enfrenta hoje em dia?

Embora o padrão de vida da população tenha melhorado de maneira geral, no contexto de desigualdades, a diferença entre as pessoas marginalizadas e comunidades mais vulneráveis e aquelas que têm muito poder e acesso aumentou. Então, o que as pessoas ganharam em termos de algum tipo de mudança, particularmente através de subvenções sociais, acesso à educação e aos serviços de saúde e assim por diante, elas perderam no reconhecimento de que os benefícios da transição não estão fluindo de uma forma amplamente suficiente. A segunda coisa que também é comum na transição é que, quando a promessa inicial de transparência e prestação de contas não é cumprida na prática, a corrupção ou a impunidade, além de um nível de desconfiança e insatisfação, enraizam-se no seio da população. As pessoas têm cada vez mais certeza do que são demandas legítimas e as defendem. Por isso alguns dos direitos civis e políticos que esperávamos ver solucionados estão agora re-emergindo como áreas de preocupação.

Nós tivemos recentemente o caso de uma pessoa que estava dirigindo um táxi e estacionou do lado errado da rodovia, sendo expulsa do carro, algemada em uma van da polícia e arrastada pelas ruas, finalmente morrendo em uma cela da prisão. Algumas semanas atrás, tivemos outro policial que fez a mesma coisa, apesar de, nesse caso, a pessoa, que era um intérprete judicial, não ter morrido, mas está internada no hospital. Por isso, a impunidade é um problema enorme. Temos também um colapso total na capacidade de nossa polícia para lidar profissionalmente com protestos. Mas o que é profundamente preocupante e problemático é que muitos desses protestos estão ocorrendo só por causa da falta de prestação de contas dos políticos e funcionários públicos. Por exemplo, em um município pequeno, há pessoas sob pressão financeira que vivem em áreas onde há uma taxa de desemprego de 60%, vendo pessoas que elas mesmas elegeram dirigindo não apenas um carro, mas uma frota de carros extremamente caros, enquanto serviços básicos como a coleta de lixo não estão sendo atendidos, e não há nenhuma responsabilização por isso.

O que você considera como papel da África do Sul no continente a respeito dos direitos humanos?

Da perspectiva do Centro de Recursos Legais, nós agimos muito mais como parte de uma entidade da sociedade civil que usa a Lei como instrumento de justiça para pessoas vulneráveis, então nosso engajamento no momento tem sido muito mais em torno do trabalho com organizações individuais e profissionais do direito para desenvolver nosso próprio conhecimento e para compartilhar nossas experiências com outras organizações e trabalhar com os outros usando a Lei como instrumento de justiça em defesa do Estado de Direito. Nós identificamos áreas-chave onde gostaríamos de ver uma maior colaboração e cooperação entre organizações da sociedade civil, como a nossa. E nós temos trabalhado para isso em particular, mas não exclusivamente, no nível da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. As áreas-chave que nós focamos são em relação ao povo indígena e o direito consuetudinário como direito civil, e especialmente em relação à indústria extrativa.

Nós estamos profundamente preocupados com a questão de gênero e da proteção e da dignidade de pessoas no continente, para que vivam sem medo e sem a ameaça de violência em razão de escolha sexual, entre outros. Então certamente fizemos submissões sobre isso. Mas direitos humanos não podem ser limitados aos direitos civis, particularmente no mundo em desenvolvimento. Nesse nível, há outras faces do direito a serem consideradas, como a interface entre direito consuetudinário e discriminação de gênero, a relação entre requisitos para “consentimento livre, prévio e informado” e o desenvolvimento da indústria extrativa.

Quais são as políticas inovadoras e / ou estratégias que têm sido empregadas no combate à violação dos direitos humanos na África do Sul?

A Constituição sul-africana, assim como a de países como a Colômbia, é muito clara sobre o compromisso com todos os direitos e não se limita aos que são tradicionalmente chamados direitos civis e políticos. Isso significa que há muita oportunidade para o uso da Lei como um instrumento de justiça em torno de questões sócio-econômicas. Tem havido bastante inovação a respeito disso, e há uma série de processos judiciais que criaram precedentes bastante úteis que são usados de forma extensa em outras jurisdições. Esses casos incluem os que demonstram como o direito à saúde, educação, habitação, etc, são todos direitos sujeitos à jurisdição no âmbito do sistema judicial e da Constituição.

Acho que ao longo dos anos, buscamos garantir que nossos clientes, muitos dos quais não são indivíduos, mas são grupos ou grandes comunidades, sejam capazes de forjar-se em organizações que podem servir aos seus interesses, organizando seus próprios assuntos.

A segunda coisa é que, apesar de sermos uma organização de litígio, reconhecemos que alguns dos interesses de nossos clientes podem muito bem ser servidos por outros tipos de intervenções, incluindo, por exemplo, propostas de reforma de políticas ou leis. Assim, não usamos apenas precedentes jurídicos, mas também nos envolvemos em nome de nossos clientes com processos de formulação de políticas e de desenvolvimentos legais.

A terceira coisa é que nós tentamos desenvolver e ampliar nossa rede, tanto para os propósitos do nosso trabalho, mas também para reduzir o isolamento e a marginalização dos nossos clientes, em colaboração com outras organizações ativas na mesma esfera. Isso é importante para assegurar que nós e os nossos clientes sejamos capazes de interagir com a sociedade civil e com os movimentos sociais, garantindo uma melhor compreensão dos casos, e para reconhecer que há necessidade de outros tipos de intervenções.

O Centro de Recursos Legais colaborou com a Comissão Africano dos Direitos Humanos e dos Povos?

Nós certamente temos trabalhado com a Comissão Africana. Fizemos várias apresentações, e eles têm se centrado principalmente nas três áreas que já mencionei. Uma delas é a questão do direito consuetudinário e o papel que têm em especial sobre os direitos das mulheres. Isso tem a ver com nosso engajamento em torno dos direitos de povos indígenas, e, nesse sentido, nós em primeiro lugar levantamos várias preocupações que surgem na África do Sul e na África austral em relação a comunidades indígenas, particularmente as comunidades Khoisan. Também estamos cientes do fato de a noção dominante do que constitui uma comunidade indígena nem sempre levar em conta as comunidades tradicionais que têm existido ao longo de muitas décadas na África. Elas podem não ser consideradas indígenas no mesmo sentido, por exemplo, em que as comunidades nativas americanas são identificadas como sendo a “Primeira Nação”, mas ainda assim são comunidades que ocuparam a terra da qual elas foram removidas forçadamente através do colonialismo e do imperialismo. Então, uma questão que temos levantado é como se compreende uma comunidade indígena em um contexto de deslocamento colonial, em que há comunidades ocupando terras há séculos, mas não são entendidas como sendo indígenas. Na área da indústria extrativa, nós somos uma das organizações da sociedade civil que atuam como suporte ao grupo de trabalho da Comissão Africana que lida com esse tema. Nós nos empenhamos, engajando e fornecendo material e apoio aos membros da Comissão que compõem esse grupo de trabalho.

Qual é a sua avaliação do papel das empresas brasileiras na indústria extrativa, particularmente na África do Sul?

Tenho certeza de que o papel das empresas brasileiras nas indústrias extrativas não se resume à Vale, mas a Vale é certamente uma empresa com a qual nos cruzamos e, infelizmente, ela segue o roteiro negativo que muitas empresas sul-africanas seguem na forma como realiza seu trabalho no continente africano, ou seja, não consegue garantir que haja o consentimento prévio e informado. Isso faz com que comunidades que não são plenamente informadas ou em pleno consentimento sejam removidas em circunstâncias em que seus meios de subsistência, a vida familiar, entre outros sejam negativamente afetados. E muitas vezes a remoção é coercitiva. A questão da degradação ambiental não é tampouco abordada durante operações de mineração, e certamente não há garantias, financeiras ou qualquer outra, em termos de reabilitação.

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