Em março, senadores e deputados de Nova York aprovaram um projeto de lei que regulamenta o uso recreativo da macoha, tornando-se o 17º estado a legalizar totalmente a cannabis nos Estados Unidos. Agora, apenas 12 estados mantêm algum tipo de restrição legal, ainda que permitam o uso medicinal. Ao sancionar a proposta, o governador Andrew Cuomo classificou a data como histórica, uma vez que “corrige os erros do passado, pondo fim às duras penas de prisão, abraça uma indústria que fará crescer a economia do estado e prioriza comunidades marginalizadas para que, aqueles que mais sofreram, sejam os primeiros a colher os benefícios”.
No México, a Câmara dos Deputados e o Senado também aprovaram um projeto de lei que pode levar o país a se tornar o terceiro no mundo a autorizar o comércio da planta em nível nacional, depois do Uruguai e do Canadá.
Por conta de algumas mudanças dos deputados, o projeto precisa passar novamente pelos senadores antes da sanção presidencial. O consumo de cannabis já foi descriminalizado no México há décadas por decisão da Suprema Corte. O que está em jogo agora é a liberação e legalização do comércio e produção.
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No Brasil, o proibicionismo continua a ser a orientação vigente. A discussão sobre a descriminalização, que começou no STF (Superior Tribunal Federal), em 2015, foi suspensa. Em 2019, a corte ensaiou retomar o assunto, mas o tema foi retirado da pauta, sem previsão de retorno. Na América do Sul, somente o Suriname e as Guianas seguem a mesma política.
“Nós vamos na contramão do mundo, adotando postura ativa para coibir qualquer possibilidade de uso, mesmo medicinal ou terapêutico, de drogas”, afirma o advogado Henrique Apolinario, do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas. “Os exemplos citados [de NY e México] regulamentam o acesso à cannabis, com possibilidade de controle do mercado pelo Estado, tributação, e a construção de políticas baseadas em fatores sociais e de saúde pública.”
A atual postura do governo contribui para o agravamento dos riscos de saúde de pessoas que dependem de remédios à base de cannabis para tratamentos. Em fevereiro, uma ação movida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) colocou em risco a vida de cerca de 14 mil pacientes ao tentar impedir o trabalho da Abrace (Associação Brasileira Cannabis Esperança), ONG paraibana que, desde 2017, tem autorização judicial para plantar maconha e produzir medicações para o tratamento de doenças como Parkinson e epilepsia.
A ação da agência deu início a uma campanha nas redes sociais, que contou com o apoio de artistas como Rita Lee. “Depois que passei a usar o óleo de Cannabis, minha escoliose galopante finalmente me fez andar normalmente sem qualquer dor. Imploro à Anvisa que reconheça o trabalho sério da Abrace e entenda que seu trabalho precisa continuar”, declarou a cantora.
Com a mobilização virtual, a Justiça voltou atrás e suspendeu a revogação em março. Mas outras instituições, como a Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e à Pacientes de Cannabis Medicinal), do Rio de Janeiro, e a Cultive, de São Paulo, continuam enfrentando problemas. Todas as cinco principais associações do tipo existentes no Brasil estão com autorização em fase de recurso.
Para Apolinário, o caso ilustra a necropolítica adotada pelo atual governo de maneira cruel. “Uma organização que atende a tantas pessoas de maneira socialmente sustentável, diminuindo o sofrimento e trazendo saúde para pessoas em todo o território nacional, ser atacada por meio da Anvisa só demonstra o caráter inconsequente das medidas atuais”, aponta.
Para além da questão medicinal, ao promover o superencarceramento, o proibicionismo torna-se um dos principais responsáveis pelo boicote geracional da população negra, uma vez que afeta, sobretudo, a parcela mais vulnerável da sociedade. Não à toa o estado de Nova York prevê investir 40% da receita tributária da maconha em comunidades formadas por minorias sociais.
“Qualquer medida de regulamentação, sobretudo comercial, deve ter seus ganhos direcionados a essas comunidades. Mais do que isso, o fim da chamada guerra às drogas demanda um processo de justiça de transição”, afirma Apolinário. Como lembra o advogado, o proibicionismo não passa de um pretexto para marginalizar cada vez mais populações já estigmatizadas. “A chamada guerra às drogas é na verdade uma guerra contra as pessoas negras.”