Quase dois séculos após surgirem as primeiras leis de combate à escravidão no Brasil, o país ainda registra números altos de pessoas submetidas a condições análogas ao trabalho escravo. Entre 1995 e 2016, mais de 50 mil pessoas foram libertadas, segundo dados do MPT (Ministério Público do Trabalho). Ou seja, em 21 anos, seis pessoas foram resgatadas por dia no país.
Esses números dão a dimensão do problema que ainda persiste no Brasil e mostram a necessidade de um conjunto de leis que garantam a proteção aos direitos trabalhistas e a penalização de empresas e pessoas que violarem tal legislação. Um dos instrumentos mais simbólicos e eficazes no combate ao trabalho escravo é a chamada “lista suja”.
A medida, criada em 2004, não só expõe empregadores que submetem trabalhadores a condições análogas à escravidão, como também os penaliza por meio de aplicação de multas e fiscalizações durante dois anos. Além disso, os empregadores incluídos na lista têm mais dificuldades em obter crédito de instituições financeiras e de prestar serviços ou vender produtos a empresas comprometidas com a erradicação do trabalho escravo.
Por conta da visibilidade dada a esses casos e da penalização imputada, a lista suja tem sido questionada judicialmente nos últimos 14 anos, como é possível acompanhar no infográfico abaixo.
Considerada uma política de Estado exemplar pela ONU e pela OIT, a lista suja tem sofrido repetidos ataques de entidades representativas de setores como o agronegócio e a construção civil, que tentam abolir o instrumento pela via judicial. Mais recentemente, o próprio Governo Federal tentou enfraquecer a “lista”, com a edição da Portaria n° 1.129/2017, que impôs obstáculos à publicação da lista. Antes disso, o Governo Temer já havia se recusado a divulgar a “lista” mesmo após decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que declarou a sua constitucionalidade.
“O vaivém da lista suja e as mudanças na legislação enfraquecem a política nacional de combate ao trabalho escravo. A insegurança jurídica compromete o trabalho dos órgãos de fiscalização, e isso explica em parte a queda vertiginosa das operações de resgate nos últimos anos. A resistência de alguns setores problemáticos sob o aspecto do uso de mão de obra escrava apenas reforça a importância da manutenção de um instrumento como a lista suja, para que essas pessoas sejam libertadas de condições subumanas às quais são submetidas por seus empregadores.”, explica Caio Borges, coordenador do programa de Desenvolvimento e Direitos Socioambientais da Conectas.
O número de fiscalizações do Grupo de Trabalho de Combate ao Trabalho Escravo, responsável por identificar violações e libertar trabalhadores, se reduz a cada ano. De acordo com dados obtidos pelo portal de notícias G1, por meio da Lei de Acesso à Informação, o ano de 2017 teve o menor número de operações da equipe desde que foi instituída a lista suja, em 2004. Foram apenas 88 fiscalizações ao longo do ano.
A queda no número de fiscalizações em 2017 trouxe consigo o menor número de trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão desde 1998: apenas 341 pessoas foram libertadas, o que representa uma diminuição de 61,5% em relação ao ano anterior, 2016. Para se ter uma ideia, em 2007, praticamente seis mil pessoas foram resgatadas, ou seja, em uma década, o número de pessoas resgatadas caiu 95%.
De acordo com a legislação brasileira, o trabalho análogo à escravidão estará caracterizado quando o trabalhador for submetido a uma ou mais das seguintes situações: trabalho forçado; jornada exaustiva; condição degradante de trabalho; restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; retenção no local de trabalho em razão de cerceamento do uso de qualquer meio de transporte, manutenção de vigilância ostensiva e/ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Atualmente, com a suspensão da Portaria nº 1.129/2017 pela Ministra Rosa Weber, a publicação da lista suja deve ocorrer semestralmente e fica ao encargo do Ministério do Trabalho. No entanto, em janeiro deste ano, a Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias) ingressou com uma segunda ação junto ao Supremo para barrar a publicação da lista suja, prevista na Portaria que atualmente está em vigor (Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 2016). Na ADPF 509, a Abrainc argumenta que a publicação da lista só poderia ser regulamentada por meio de uma lei específica, e não por meio de uma portaria. O processo aguarda o julgamento do ministro Marco Aurélio.
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