Há cinco anos, a Lei de Migração estabeleceu um novo paradigma para o Brasil. Sancionada em 2017, substituindo o Estatuto do Etrangeiro, a lei instituiu uma perspectiva da migração pautada nos direitos humanos com o repúdio à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação como um de seus princípios.
O processo de formulação e regulamentação foi acompanhado de perto por organizações da sociedade civil, entre elas a Conectas, que atuou em conjunto com instituições que trabalham com migrantes para que o projeto de lei contemplasse suas necessidades e seus direitos.
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Para Letícia Carvalho, assessora de advocacy da Missão Paz, organização que também participou do processo, a lei ainda não é a ideal, mas já aproxima o Brasil de um modelo menos discriminatório. “A lei é bastante garantista do ponto de vista da mudança do paradigma, para se entender a migração como um direito”, aponta. “Com a pandemia, se ainda estivéssemos sob o contexto do Estatuto do Estrangeiro, a situação dos migrantes mais vulneráveis poderia ser ainda mais complicada.”
À Conectas, Carvalho relembrou o processo de regulamentação da lei e destacou a importância do processo migratório e da mobilidade humana para a sociedade.
Letícia Carvalho: Na época, nós — os grupos de organizações da sociedade civil que estavam fazendo a incidência —, ficamos preocupados com alguns vetos. Apesar de uns não terem impacto tão grande no espírito e na proposta da lei, outros impactavam a renovação legislativa que esperávamos naquele momento. Então, selecionamos alguns desses vetos para tentar derrubar no Congresso, porque entendemos que não era uma questão de inconstitucionalidade, tal como foi justificado, e, sim, uma decisão política. Concordo com a Camila nesse sentido.
Letícia Carvalho: Um dos artigos vetados, por exemplo, era a própria definição de “migrante”. Com a mudança, a lei deixou de se chamar “Estatuto do Estrangeiro” — sendo que o termo “estrangeiro” tem uma conotação bastante negativa, estigmatizada, como o estranho que vem de fora — e passamos a adotar a terminologia “migrante”, já mais adequada à realidade contemporânea. E por que “migrante”? Dentro do tema migratório da mobilidade humana, sempre usamos o termo “imigrante”, para a pessoa que chega no país, e “emigrante”, para quem sai. Já o termo “migrante” é usado para tratar de um grupo mais amplo, incluindo também os refugiados, os solicitantes de refúgio e os apátridas, por exemplo. Por isso, quando a lei veio com esse veto, a justificativa nos causou muita estranheza.
Outro veto questionado foi o da anistia. A gente chama de anistia esse processo de regularização migratória amplo e facilitado, já que a lei anterior era bastante limitada nas possibilidades de vias migratórias. Desde a ditadura, o Congresso aprovava essas anistias migratórias a cada década, mais ou menos, desde 1981. A última, em 2009, chegou a regularizar mais de 40 mil pessoas na primeira fase. Como estamos virando essa página e mudando a lógica, esperávamos que as pessoas que estão em situação irregular pudessem se regularizar, porque o acesso a documentos é primordial para o acesso a direitos. Mesmo pessoas indocumentadas podem ter acesso a direitos básicos, como o SUS, mas a gente sabe que na prática isso é muito difícil. Então esse veto segue trazendo consequências. São cinco anos de Lei de Migração, mas a gente ainda segue com um número grande de pessoas indocumentadas. Isso poderia ter sido sanado lá no marco da lei, e hoje está mais agravado por causa da pandemia.
Letícia Carvalho: É inegável a importância da presença da sociedade civil e das organizações que tiveram recursos para estar dentro do Congresso. Destaco, sobretudo, o diálogo com a relatoria no momento de escrever um texto substitutivo, para que conseguíssemos inserir ali elementos a partir da experiência na ponta, de décadas de atendimento a migrantes, que organizações como a Missão Paz a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e outras organizações têm. Essa proximidade influenciou em dois aspectos: tanto no conteúdo da lei em si, revisando e sugerindo, como também em sua aprovação.
Esse discurso anti-migratório não é exclusivo do Brasil. Ele entra em uma lógica internacional, e mostra como os Estados são pouquíssimo preparados para lidar, trazer respostas e desenvolver políticas públicas. Os Estados lidam com a migração numa lógica de crise migratória, principalmente no norte global. Mas a gente costuma salientar que a migração é um fato, uma consequência do nosso sistema, e ela tem que ser encarada como tal. O conceito de crise passa a ideia de que quando fizermos a gestão dessa crise isso vai se resolver. Mas não é isso que vai acontecer, porque a migração não vai cessar de uma hora para outra. As pessoas não vão querer ficar em seus territórios, porque elas são expulsas. As lógicas da economia mundial e da exploração dos recursos naturais impactam a vida das pessoas, sobretudo as mais marginalizadas.
Em termos globais, os discursos anti-migratórios ganham força porque operam em uma lógica exatamente contrária ao que acabei de dizer, imaginando que se deportar, construir prisões e muros a migração vai parar. Mas não é isso que vemos todos os dias. No Brasil, com o governo Bolsonaro, vemos ataques pontuais, porque a migração nunca foi um tema que ganhou um super destaque, mas quem trabalha de perto percebe uma lógica bastante discriminatória.
Durante a pandemia, esses dispositivos de impedimento e circulação de pessoas foram necessários, e aconteceram no mundo todo. Mas o que observamos no Brasil, que deve ter se repetido em outros lugares, foi o fato de se utilizarem da questão sanitária como uma cortina de fumaça, uma grande desculpa para barrar a migração, uma migração de pessoas em situação vulnerável. Então, mais do que inconstitucional, percebemos o caráter discriminatório desses dispositivos.
A uma certa altura, por exemplo, todas as fronteiras terrestres do Brasil estavam fechadas, mas continuava aberta com o Paraguai, por conta de interesses econômicos. Além disso, a fronteira com a Venezuela continuou fechada, colocando as pessoas em uma situação mais vulnerável ainda, trazendo outros problemas como a inabilitação do pedido de refúgio, no sentido de que os migrantes que entraram nesse contexto, eram impedidos de pedir refúgio. É algo que nunca havia ocorrido. Isso contraria uma legislação importante dentro de uma lógica de convenção internacional.
Trabalhando com esse público, a gente observa vários níveis de importância que o processo migratório e da mobilidade humana podem trazer aos países. Existe, sim, o nível cultural, essa questão da troca, e de poder entrar em contato com conhecimentos e habilidades diferentes. E isso se expande também para o nível econômico. Muitas vezes, acontece dos migrantes ocuparem postos que os nacionais não estão dispostos a fazer, mas, no caso do Brasil, tem ainda a questão linguística. Muitos dos migrantes falam diversos idiomas, e isso é interessante para muitas áreas de trabalho. Acho que esses são alguns dos pontos a se considerar para pensarmos em uma acolhida digna.
A publicação “Estrangeiro, nunca mais! Migrante como sujeito de direito e a importância do advocacy pela nova Lei de Migração brasileira”, de Cyntia Sampaio e Ebenezer Oliveira, traça um panorama sobre o processo de elaboração e tramitação da Lei de Migração até sua aprovação, em 2017. A obra apresenta os desafios, estratégias e lições aprendidas sobre as táticas de incidência política utilizadas para convencer parlamentares a votarem no então projeto de lei.