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Justiça por videoconferência cala denúncias de tortura, afirmam entidades à CIDH

Organizações anti-tortura pedem que organismo internacional seja contra uso de procedimentos virtuais na justiça penal

Audiência de custódia presencial durante a pandemia. Foto: TJSE Audiência de custódia presencial durante a pandemia. Foto: TJSE

O uso de videoconferência nas audiências de custódia impede o combate à tortura. É o que afirmam entidades de direitos humanos que, nesta quarta-feira (30), participam de uma audiência promovida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para debater o tema, com destaque para os efeitos da chamada justiça virtual sobre o direito de defesa e à integridade física de pessoas privadas de liberdade na região.

Para as organizações que assinam um documento com denúncias enviado à CIDH, o fim das audiências de custódia presenciais – uma das principais ferramentas de contenção de abusos policiais – é, atualmente, um dos  maiores  obstáculos no combate à tortura no Brasil e na Améreica Latina. 

Antes da pandemia, a lei determinava que a pessoa presa fosse levada à presença de um juiz o mais rápido possível para análise tanto da legalidade da detenção quanto de eventuais sinais aparentes de maus-tratos – o que é impossível à distância, por uma tela de computador, sem contato visual com o corpo do custodiado. No Brasil, três meses após a pandemia ter sido declarada pela OMS, denúncias de tortura diminuíram 83%, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

Uma pesquisa encomendada pela Associação para Prevenção da Tortura (APT), que cobriu 16 países ao longo de 30 anos, evidenciou que a apresentação da pessoa presa perante o magistrado, durante as primeiras horas da custódia policial, é a forma mais eficaz para prevenir e coibir a prática de tortura e maus-tratos, justamente no momento onde o risco de abusos e tortura é mais alto. 

“A tela, a ausência física da defesa, e o fato de que, para a audiência virtual, a pessoa é mantida muitas vezes no ambiente policial ou do sistema prisional, afasta qualquer senso mínimo de segurança que a pessoa custodiada precisa ter para relatar eventual violência sofrida”, comenta Sylvia Dias, assessora jurídica e representante da APT no Brasil.

Na avaliação assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, Carolina Diniz, a justiça remota reduz as chances de denúncias. “Na ausência de um ambiente seguro, é provável que nem mesmo o relato de violência venha à tona, prejudicando a responsabilização e o controle da atividade policial”, diz.

As entidades denunciam ainda o risco de que os procedimentos judiciais remotos passem de exceção pandêmica à regra. De acordo com levantamento feito pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), de março a novembro de 2020, 19 Tribunais de Justiça do país determinaram a realização das audiências de custódia virtuais, em 12 deles a medida não estipula prazo de término. 

“No minuto seguinte à votação no Senado que proibia o uso das videoconferências, surgiu um projeto de lei para regulamentá-las. O maior perigo é que as sessões remotas  sigam após a emergência sanitária, como se não fossem um dos maiores retrocessos em termos de combate à tortura e entraves ao amplo exercício da defesa”, avalia o criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD.

Em Pernambuco, as audiências de custódia por videoconferência começaram desde o final de janeiro de 2021 e estão ocorrendo em delegacias. Segundo Maria Clara D’Ávila, advogada do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (GAJOP), “Por exemplo, a ausência da presença física da Defensoria Pública nas delegacias fragiliza ainda mais o acesso à defesa nesse momento”.

As audiências de custódia, que deixaram de ser públicas no modo virtual, podem ser realizadas por videoconferência desde a resolução 357/2020 do CNJ. Hoje, há pelo menos dois projetos de lei tramitando no Congresso brasileiro para permitir em definitivo as sessões remotas. A virtualização também comprometeu a publicidade deste tipo de audiência em países como Bolívia e Equador. 

“Antes de implementar, expandir e normalizar as audiências à distância, os Estados devem analisar cuidadosamente os problemas que já enfrentam no acesso à justicia”, alerta Isabel Roby, da sede latino-americana da Fair Trials, organização que também participa da audiência na CIDH.

As entidades chamam atenção para o fato de que não se sabe ainda quais os impactos de uma justiça penal feita remotamente. Não há, por exemplo, estudos sobre qual é o efeito das telas na percepção dos operadores de Direito, ou mesmo da aparição do custodiado em meio a um cenário de prisão para o princípio de presunção de inocência. Os problemas de comunicação que já existiam nas sessões presenciais tendem a aumentar. Segundo pesquisa feita em 2019 pelo IDDD, em SP, três em cada quatro custodiados saem da audiência sem sequer entender o que se passou.

Além de um informe sobre normalização e expansão da justiça virtual nestas diferentes realidades, as entidades cobram da CIDH normativas internacionais, principalmente, a respeito do uso de videoconferência nas audiências de custódia. Os ministros do STF terão até o dia primeiro de julho para publicar seus votos.  


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