Passados 10 anos de criação do Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), Conectas propõe uma leitura crítica do bloco.
A seguir, Laura Waisbich, assessora do Programa de Política Externa da Conectas, analisa o estado da iniciativa trilateral à luz da atuação da organização neste âmbito. Seja pela incontida ambição de reequilibrar as forças nas relações entre os diferentes Estados e blocos político-econômicos no pós-Guerra Fria ou pela aposta insistente numa aliança sul-sul, os 10 anos de Ibas inquieta, ainda sem responder completamente, qual seu legado e até onde o atual contexto e seu potencial inerente pode levar o conjunto formado por estes três países que, ao mesmo tempo, têm tanto e tão pouco em comum entre si.
A sobreposição do Ibas em relação aos Brics – do qual o Brasil, a Índia e a África do Sul fazem parte, ao lado de Rússia e China – é uma das questões fortes abordadas na análise, assim como a opção do bloco pela opacidade e a aversão à transparência em sua agenda, especialmente no que tange a conformação de um fundo de financiamento compartido.
Por fim, a análise questiona as próprias organizações da sociedade civil destes três países, lançando dúvidas e provocações sobre a real capacidade de atores não-estatais em se articularem em função de novos eixos e correlações de poder como os propostos por esta aliança que cumpre hoje sua primeira década de vida.
O IBAS 10 anos depois.
O que Brasil, Índia e África do Sul têm a dizer ao mundo
Laura Waisbich, assessora do Programa de Política Externa da Conectas.
Na semana de abertura da 68ª Assembleia Geral da ONU, realizada em setembro em Nova Iorque, o novo chanceler brasileiro Luiz Alberto Figueiredo se reuniu tanto com seus homólogos do Fórum IBAS (Índia, Brasil, África do Sul) quanto com os chanceleres dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Ao mesmo tempo em que evidenciou a pluralidade das esferas de concertação existentes, a sobreposição das agendas, das pautas e dos membros nas duas reuniões levantou questionamentos sobre a importância e a singularidade do grupo trilateral – IBAS, que completa dez anos de existência em 2013.
As dúvidas ficaram ainda mais patentes com a o adiamento da Cúpula oficial dos chefes de Estado do IBAS, marcada para junho passado e sem nova data para ocorrer. Não faltam analistas defendendo que esse é apenas mais um sinal de que o Fórum cresce à sombra dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), grupo que se reuniu em março deste ano e já se prepara para a próxima cúpula a ser realizada no Brasil ano que vem. Não se trata de mero acaso: como já se mencionou, temas e membros convergem parcialmente e não raramente são de responsabilidade do mesmo departamento nos Ministérios de Relações Exteriores.
A desaceleração da participação dos Estados no IBSA e o aumento de sua fragilidade institucional contrasta com o interesse cada vez maior de diferentes organizações da sociedade civil – trabalhando nos três países – em manter sua aposta no diálogo democrático entre potências emergentes do Sul.
Para além da cooperação trilateral entre os países, o Fórum IBAS nasce do desejo político ambicioso de seus membros de produção de uma voz internacional conjunta tipicamente do Sul e democrática. Este é um projeto importante e muito necessário em um mundo em mutação, abundante em crises e carente de mecanismos eficientes de governança.
Sem a Cúpula, nada mais natural do que contar com uma versão mais estendida do tradicional documento conjunto dos chanceleres do IBAS. A versão desse ano, divulgada dia 25 de setembro, foi mais além do usual comentário sobre questões da agenda das Nações Unidas e se assemelhou ao padrão de declarações mais extensas, abordando diversos tópico da agenda internacional e da cooperação trilateral entre os membros.
A declaração ministerial passada em revista
Desde a criação deste fórum inter-regional, que agrupa três países de regiões distintas do globo, foi salientada a identidade comum entre seus membros. Foram igualmente reiteradas as vantagens comparativas que este grupo em particular possui diante de outros agrupamentos e fóruns de debate contemporâneos, entre elas a de permitir aos países se posicionarem de maneira concertada, contundente e autônoma frente às mais diversas situações de política internacional. O IBAS já mostrou vontade e capacidade de coordenação política no passado, seja diante das crises no Oriente Médio (vide, entre outros, a Missão do IBAS à Síria em agosto de 2011 e Declaração do IBAS sobre o conflito em Gaza, de novembro de 2012), seja em posicionamentos conjuntos no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (vide, entre outros, a introdução de proposta de resolução sobre direito à saúde e acesso a medicamentos, na 12a sessão do Conselho em 2009).
A coordenação também ocorre no intuito de potencializar os esforços de reforma das instituições multilaterais. Destaca-se, neste âmbito, a menção à aspiração compartilhada, ainda que com propostas concretas concorrentes – de um lado de Brasil e Índia (junto ao G-4) e do outro África do Sul (junto aos demais países do continente africano) – por um assento no Conselho de Segurança.
Outro avanço concreto, porém tímido, no âmbito desta parceria foi a criação em 2004 do Fundo IBAS para o Alívio da Fome e da Pobreza. Tal iniciativa se fundamenta nos objetivos do próprio Fórum de contribuir para avançar os interesses dos países em desenvolvimento para além dos três países membros, por meio de mecanismos de cooperação Sul-Sul. Por seu caráter inovador, o Fundo recebeu diversos prêmios internacionais. Em sua nota, os Chanceleres do IBAS mencionaram que, ao longo dos anos, o Fundo “demostrou sua relevância e viabilidade”. Entretanto, seu trabalho permanece pouco conhecido do púbico nos três países.
Afora seu relatório anual, o qual fornece um detalhamento dos projetos realizados no âmbito do Fundo IBAS, há pouca informação disponível sobre os projetos do IBAS. Um cidadão que procure maiores informações sobre os projetos em voga se verá impedido de acessá-las no site do Fundo, pois este exige senhas para avançar na navegação. Os interessados não têm, portanto acesso a informações acerca dos processos de seleção dos projetos, seu calendário de implementação, detalhes acercas dos prestadores de serviços, relatórios de avaliação de impacto, principais beneficiários, avaliação geral do projeto, etc. Para Vrinda Choraria, da Commonwealth Human Rights Initiative, com sede em Nova Déli (Índia), “a falta de informação acerca do Fundo é frustrante, e agravada pela impossibilidade de obter informações até mesmo por meio das Leis de Acesso à Informação existentes nos três países, como mostrou a tentativa até hoje infrutífera de pedido de informação feitos por organizações com sede nos três países do IBAS”. Também infrutífera foi a tentativa de encaminhar o pedido de informação ao Escritório da ONU para Cooperação Sul-Sul (do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), entidade responsável pela gestão do Fundo IBAS. Pedido este que se encaixava na política de divulgação de informações do órgão. “ É desconcertante que as atividades de um Fundo, promovido pelos três países como um símbolo de cooperação e assistência, seja envolto em tamanho sigilo”, acrescenta Choraria.
Também o tamanho e capital disponível no Fundo (cada país contribui com 1 milhão de dólares ao ano), parecem bastante modestos se comparados aos 100 bilhões previstos para o futuro Banco dos BRICS. Mesmo reconhecendo as diferenças naturais entre um fundo e um banco, ambos são dinheiro público empregados com finalidade de financiar o desenvolvimento. Adicionalmente, os tipos de projetos financiados pelo Fundo revelam igualmente um modelo de desenvolvimento bastante distinto daquele focado em infraestrutura que será o foco do novo Banco.
Ainda no tema desenvolvimento, a declaração conjunta menciona a visão do IBAS para os debates sobre a agenda de desenvolvimento Pós-2015. Foram mencionadas as seguintes prioridades: alívio da pobreza, crescimento econômico, criação de empregos, inclusão social e desenvolvimento. É importante, no entanto que os países sejam mais vocais quanto à necessidade de respeito aos direitos humanos nesta nova agenda que se constrói. Desenvolvimento e direitos humanos são agendas complementares e se reforçam mutualmente.
Na Declaração, os três chanceleres reafirmaram a relevância do grupo e vontade de fortalecer a cooperação trilateral no futuro. Elogiam as múltiplas coordenações políticas no âmbito internacional ocorridas em distintos fóruns e temas. Na ONU sobre Síria e Oriente Médio, no BASIC (Brazil, South Africa, India and China) sobre mudança climática, na organização mundial de propriedade intelectual. Até mesmo nos BRICS, diz a Declaração.
Entretanto, não está claro em que medida os países do IBAS se coordenam no âmbito do grupo ampliado, os BRICS. Inversamente, os BRICS parecem ocupar cada vez mais espaço na agenda política internacional de Índia, Brasil e África do Sul. O caso da Síria é o melhor exemplo disso.
Afora a condenação do uso de armas químicas, os parágrafos dedicados à Síria nesta declaração ministerial do IBAS pouco avançam pouco em relação ao que havia sido mencionado na Declaração dos BRICS em março de 2013 acerca da necessidade de uma solução diplomática para o conflito bem como o acesso desimpedido à ajuda humanitária a todas as partes envolvidas no conflito. Passados mais de seis meses desde a Cúpula de Durban e dado o agravamento da crise humanitária, as ações concretas (em termos, por exemplo, de doação financeira) estão aquém da capacidade dos países. O Brasil, por exemplo, doou em 2013 US$ 150 mil a refugiados sírios na Jordânia. Sinalizou ainda a intenção de aportar mais US$ 100 mil à OCHA ainda em 2013. Ainda que efetivadas, as transferências permaneceriam aquém da capacidade brasileira.
Um compromisso genuíno com a mitigação da grave situação humanitária na Síria e região requer uma disposição efetiva de aportar recursos condizentes não apenas com a magnitude da economia dos países em questão e a com liderança emergente hoje exercida, mas também com a prioridade crescente que a política externa dos países do IBAS tem dado à cooperação humanitária.
A referência aos direitos humanos na declaração conjunta tampouco trouxe novidades em relação ao que havia sido dito pelos BRICS em março, com uma menção aos 20 anos Convenção Mundial sobre Direitos Humanos, em Viena, e com uma promessa de maior colaboração neste setor. Para as organizações acompanhando o IBAS, esta deve ser uma prioridade de uma coalização que ergueu a democracia e os direitos humanos como pilares de sua identidade e sua implementação será monitorada com cuidado.
De acordo com Mandeep Tiwana, da organização CIVICUS com sede em Johanesburgo (África do Sul), “Mesmo que o IBSA tenha um grande potencial para trabalhar na proteção de direitos humanos e da democracia em escala global, seus membros precisam fortalecer sua própria legitimidade para difundir estes valores”. Para tanto, Tiwana apresenta três fatores que contribuíram ao processo: primeiro, os líderes políticos destes países precisam se conscientizar que apesar das imperfeições no respeito aos direitos humanos em âmbito doméstico, os países do IBAS já avançaram bastante nesta temática. Segundo, é preciso deixar de lado agrados diplomáticos e dar nomes aos bois – em fóruns bilaterais e multilaterais – quando graves violações são cometidas. Isso exige um esforço de reformular doutrinas diplomáticas e o padrão de relações entre países. Em terceiro lugar, é preciso que haja um reconhecimento de que o IBAS tem muito a oferecer em termos de cooperação sul-sul, ajudando a pôr em prática as instituições democráticas e estruturas estáveis ??em grande parte do mundo em desenvolvimento.
Por fim, o documento inclui a questão da espionagem da agência nacional de segurança norte-americana (NSA). Ecoando o discurso proferido pela Presidente do Brasil Dilma Rousseff, na abertura da Assembleia Geral da ONU, a declaração repudia a prática massiva de interceptação ilegal de comunicações em países terceiros e a qualificam como violação à soberania nacional e as liberdades individuais. Os países de IBAS e BRICS também mencionaram apoio à proposta brasileira de impulsionar uma discussão multilateral sobre governança da internet. A mesma linguagem foi expressa na declaração dos ministros dos BRICS, no dia seguinte.
Daqui em diante
Não parece prudente suplantar ou sepultar o IBAS. Após uma década de existência, o grupo ainda cumpre um papel importante e precisa ser revitalizado. Juntos, IBAS e BRICS, perfazem funções distintas na arena internacional e podem trazer benefícios diferentes ao país e à sociedade. Apostar no IBAS é apostar em um modelo de desenvolvimento aliado à democracia, valorizando a participação social na formulação de políticas públicas e os direitos humanos. Internacionalmente, trata-se de trazer inovação ao diálogo e cooperação sul-sul e de fortalecer a autonomia destes países em relação aos tradicionais big players, sejam eles do Leste ou do Oeste. Permite ainda de impulsionar a proposição de novas agendas e de reunir esforços criativos para gestão de crises internacionais. Trata-se, por fim e, sobretudo, de potencializar a reforma da governança global, para que ela beneficie não somente os Estados, mas também que possa atender os anseios de suas sociedades. Desta aposta no diálogo democrático nasce a necessidade de fortalecê-lo. Desenvolvimento com democracia parece ser o slogan nacional dos três países do IBAS, falta agora aliar a identidade internacional do grupo a estes mesmo valores que moldam seus tão aclamados projetos nacionais.
Veja aqui a carta enviadas pela Conectas, Civicus e Commonwealth Human Rights Initiative para os ministros de relações exteriores dos países integrantes do Ibas demonstrando preocupação com a não realização da Cúpula de 2013 do grupo.
* Laura Trajber Waisbich é cientista política e analista internacional. Formou-se em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e concluiu seu mestrado em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Integra o Programa de Política Externa e Direitos Humanos da Conectas, aonde desenvolve atividades junto aos países emergentes e no âmbito da produção de conhecimento para ação. Desde 2011, Laura é também pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), com trabalhos na área de participação social, cooperação sul-sul para o desenvolvimento e governo aberto.