No dia 7 de novembro, policiais militares acompanharam o velório, o cortejo fúnebre e o sepultamento de Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos. A pé, em motos e viaturas, eles ostentavam armamento de longo calibre. Em certo momento, uma das viaturas bloqueou o trajeto do cortejo, sob a justificativa de estar “organizando o trânsito”. A presença policial causou desconforto e intimidação de familiares, crianças, adolescentes e moradores do Morro do São Bento na Baixada Santista, litoral de São Paulo, algumas testemunhas da ação policial que culminou na morte de Ryan e Gregory
Dois dias antes, no dia 5, uma operação policial tirou a vida de Ryan. Na mesma abordagem, Gregory Ribeiro Vasconcelos, de 17 anos, também foi morto, enquanto um adolescente de 15 anos e uma jovem de 24 anos foram feridos. Em coletiva de imprensa, a PM admitiu que o tiro partiu “possivelmente” da arma de um policial e afirmou que os agentes estavam se defendendo de criminosos.
Na semana que esses crimes completam um mês, outros casos de violência policial em São Paulo ganham destaque. Entre eles, o de um homem arremessado de uma ponte por PMs e o de outro homem morto por um policial de folga após pegar um sabão em um mercado.
As informações sobre as mortes de Ryan e Gregory constam no III Relatório de Monitoramento de Violação de Direitos Humanos na Baixada Santista Desdobramentos da “Operação Escudo/Verão”, elaborado pela Ouvidoria de Polícia de São Paulo, organizações da sociedade civil e movimentos de defesa dos direitos humanos, incluindo a Conectas.
Ainda durante o enterro de Ryan, o ouvidor de Polícia Claudio Aparecido da Silva,, questionou a presença dos policiais no local,
“É repudiante, é um absurdo. Aqui no estado de São Paulo virou política governamental colocar polícia em velório de gente que morre pelas mãos da própria polícia para intimidar as pessoas. Isso é vergonhoso, é o cúmulo da falta de respeito aos direitos fundamentais das pessoas. Neste estado não pode mais ter ato fúnebre?, questionou o ouvidor, ao jornal O Globo.
Na tarde do mesmo dia 7, o enterro de Gregory também contou com a presença de duas viaturas da PM dentro do cemitério Ao Globo, a mãe do adolescente, Lucinéia Damasceno, expressou sua tristeza por não ter podido realizar o velório do filho, já que seu rosto foi “completamente desfigurado” durante os procedimentos preparatórios para o enterro.
A morte dos jovens vem na esteira das operações Escudo e Verão, realizadas na Baixada Santista, entre julho de 2023 e abril de 2024, as quais, somando 84 vítimas, são consideradas as operações policiais mais letais da história de São Paulo — ficando atrás apenas do massacre de 111 detentos do Carandiru e dos Crimes de Maio de 2006 com mais de 500 mortes.
Uma das vítimas da Operação Verão foi Leonel Andrade Santos. Um homem de 36 anos que usava muletas. Ao jornal Deutsche Welle Brasil, vizinhos disseram que os policiais mandaram Leonel jogar os apoios no chão e correr, sendo atingido por um tiro no tórax ao não conseguir.
Leonel era o pai do menino Ryan.
Beatriz da Silva Rosa, a mãe de Ryan e esposa de Leonel, afirma que o governador de São Paulo nunca a procurou para expressar condolências ou oferecer algum tipo de suporte.
Entre janeiro e setembro de 2024, o estado de São Paulo registrou 496 mortes resultantes de intervenções policiais, segundo dados da própria Secretaria de Segurança Pública (SSP). Esse número representa um aumento de 75% em comparação com o mesmo período do ano anterior. Na capital paulista, o total de vítimas foi de 130. Só na Baixada Santista foram registradas 109 mortes: uma média de uma vítima a cada três dias.
De acordo com o relatório Pele alvo: Mortes que revelam um padrão, da Rede de Observatórios da Segurança, em 2023, no Brasil inteiro, agentes de segurança do estado mataram 4.025 pessoas, sendo 2.782 delas negras. Os dados também indicam que a polícia matou 243 crianças e adolescentes, com idades entre 12 e 17 anos.
No último dia 18 de novembro, a Conectas enviou um apelo urgente às Nações Unidas para investigar os assassinatos de Ryan e Gregory. O pedido foi enviado aos Relatores Especiais da ONU sobre execuções extrajudiciais, justiça racial e racismo, destacando a crescente letalidade policial que impacta comunidades negras e marginalizadas.
Entre as recomendações às autoridades brasileiras, além de investigações independentes, reatribuição temporária dos agentes e apoio às famílias, está o uso obrigatório de câmeras corporais.
Para Carolina Diniz, coordenadora do programa de Enfrentamento à Violência Policial da Conectas, a letalidade e a violência policial são problemas sistemáticos em São Paulo. “Os casos recentes são apenas uma amostra cruel de como os agentes de segurança pública agem, especialmente contra a população pobre e negra”, destaca. Para ela, os dados são suficientes para demonstrar que não se trata de caso isolado, como vem afirmando as autoridades paulistas.
Como destaca o relatório Pele alvo, o estado de São Paulo enfrentou uma transformação significativa na abordagem à segurança pública. Antes reconhecido pelos avanços na redução de mortes causadas por policiais, 2023 representou um marco sob a nova gestão estadual de Tarcísio de Freitas. O governo não apenas endossou a violência como ferramenta política, mas também alterou o perfil da administração da Secretaria de Segurança Pública, com o ex-policial Guilherme Derrite no comando, e diminuiu os investimentos em câmeras corporais, comprometendo avanços anteriores.
Em setembro, a Polícia Militar de São Paulo assinou contrato com uma empresa para a aquisição de 12 mil novas câmeras corporais. A substituição dos 10.125 mil dispositivos já em uso foi justificada pela economia, uma vez que as novas câmeras permitirão que o policial ligue e desligue o equipamento conforme necessário, reduzindo a quantidade de dados armazenados. Até dezembro de 2024, quando a mudança está prevista para começar, os policiais ainda não possuem essa autonomia.
O contrato com a empresa de câmeras foi assinado após seis empresas denunciarem falhas nos testes técnicos e apontarem direcionamento na licitação. As acusações incluem favorecimento à Motorola e a presença de um botão de “excluir” no equipamento, embora o edital proíba a exclusão manual de arquivos. A Polícia Militar, na homologação, explicou que a empresa alegou que o botão é um “filtro seletivo”, e não uma função de exclusão.
A mudança pode dificultar investigações sobre violência policial. Especialistas alertam que, ao não utilizar o equipamento durante todo o turno, aumenta-se o risco de uso indiscriminado da força, sem controle adequado. Além disso, a falta de gravações pode dificultar a produção de provas essenciais para investigações, e reduzir a proteção do policial, que pode se ver em situações de risco ou ter sua conduta questionada sem o respaldo das imagens.
Em resposta a uma ação da Defensoria Pública, com apoio da Conectas e Plataforma JUSTA, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, determinou decidiu nesta segunda-feira (9) que os policiais militares em São Paulo devem utilizar obrigatoriamente câmeras corporais durante operações.
Em uma nota pública, a Conectas destacou o fato de que os policiais militares envolvidos na ação que interrompeu a vida de Ryan e Gregory não usavam câmeras corporais. “O uso e a regulamentação de câmeras acopladas à farda de policiais são medidas que contribuem para a redução de abusos cometidos por agentes de segurança pública durante as abordagens. As câmeras têm eficácia comprovada na diminuição de mortes, tanto de civis como dos próprios agentes de segurança pública”.
O ministro Rogério Schietti, do Supremo Tribunal de Justiça, disse, em reportagem do Fantástico, que “à medida em que você tem um equipamento que retira qualquer dose de subjetivismo nessa prova, você torna o processo criminal muito mais eficiente, muito mais seguro, evitando o erro judiciário, evitando que pessoas inocentes sejam condenadas. E, portanto, também punindo quem deve ser condenado com maior eficiência”.
Um levantamento da FGV, apontou que, entre julho de 2021 e julho de 2022, o uso das câmeras corporais pela PM de São Paulo evitou 104 mortes. Além disso, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Unicef, divulgado em maio de 2023, revelou que a letalidade policial em serviço foi a mais baixa da história em 2022, indicando o impacto positivo das câmeras na redução da violência policial.
“Os sérios problemas na segurança pública, para mim, estão localizados no Derrite, que tem sinalizado que não tem mais controle da violência policial e faz um aproveitamento midiático da situação da segurança pública”, afirmou, em entrevista ao jornal O Globo, Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Segundo um levantamento da revista piauí, Derrite já foi investigado por 16 homicídios ocorridos durante operações nas quais participou como policial da Rota.
“A gente não tem um secretário técnico, com conhecimento na área, mas um político (no cargo). A tropa está se sentindo solta (para agir) e vivemos o momento que vivemos. Me parece que o prazo de validade do atual secretário passou”, pontuou o professor.
Segundo apurou O Globo, embora Tarcísio afirme sua intenção de buscar a reeleição em 2026, ele ganha força como potencial candidato à presidência — principalmente, por conta da inelegibilidade de Jair Bolsonaro. Já Derrite, cogitado como sucessor de Tarcísio no governo paulista, enfrenta resistência. Após a escalada da violência, até aliados que apoiaram sua nomeação reconsideram a posição, citando “muitos erros sucessivos”.
Enquanto os políticos fazem seus cálculos, as vítimas da violência policial enfrentam perdas incalculáveis. Beatriz Silva Rosa, mãe de Ryan e viúva de Leonel, resume o desespero das famílias: “Eles [os policiais] querem matar os pais nas favelas, esperando os filhos crescerem para trocar tiro com eles e matar os filhos também”. No caso de Ryan, nem isso foi esperado.
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