A Guiné-Bissau deu início neste sábado (22/3) a sua primeira campanha eleitoral após o golpe de Estado de abril de 2012, quando militares atacaram com morteiros e granadas a sede do PAIGC (Partido Africano Para a Independência da Guiné e Cabo Verde), capturando o então presidente, Raimundo Pereira, e o primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior.
Com a votação marcada para o próximo dia 13 de abril, crescem os apelos da Guiné por uma ajuda vinda do Brasil – país de língua portuguesa cuja influência poderia ajudar “no retorno à ordem constitucional e consequente fortalecimento do estado de direito na Guiné-Bissau”.
A opinião é do jurista e defensor dos direitos humanos Bubacar Ture, da Liga Guineense de Direitos Humanos, organização parceira da Conectas. Veja a seguir os principais trechos da entrevista, concedida à pesquisadora da Conectas para África, Arlette Afagbegee, no início de março, por email. A redação original foi mantida e, por isso, pode apresentar diferenças de grafia em comparação com o português do Brasil.
Que papel o Brasil pode desempenhar na crise instalada atualmente em Guiné-Bissau?
Hoje em dia, o Brasil constitui uma potência emergente em todos os níveis – incluindo o econômico e até o diplomático. Aliás, a dimensão geoestratégica do Brasil na relação sul-sul e norte-sul não é ignorada por ninguém, sobretudo pelos países africanos da expressão portuguesa. Creio que o Brasil pode e tem todas as condições – seja no nível das Nações Unidas onde preside a Comissão da ONU para a Consolidação da Paz, seja no nível da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e da Cedeao (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) – , propor e influenciar iniciativas que visam a ajudar o retorno à ordem constitucional e consequente fortalecimento do Estado de Direito na Guiné-Bissau. Como sabem, desde o conflito político-militar de 1998, as instituições públicas e as bases sobre as quais se assenta o Estado guineense, foram severamente afectadas e quase desmanteladas.
Em consequência, a pobreza, as violações dos direitos humanos, alterações da ordem constitucional, o crime organizado nomeadamente, tráfico de drogas, aumentaram exponencialmente. O Estado não consegue fornecer os serviços básicos à população tais como saúde, educação, água, saneamento básico, energia elétrica, entre outros. Todos estes problemas se agravaram sobremaneira com o golpe de estado de 12 de abril 2012.
Nós acreditamos que, entre vários sectores, o Brasil pode ajudar a Guiné-Bissau a reformar o seu sector de defesa e segurança, identificado como dois dos principais responsáveis pela atual situação de caos em que se encontra o país. A experiência brasileira neste domínio, sobretudo por ter passado períodos algo semelhantes com a nossa situação, em que os militares assumiram funções de relevo na condução do destino do País, pode ser colocado à disposição da Guiné.
Por outro lado, no quadro da Cedeao, entidade regional que assumiu o protagonismo na resolução da atual crise guineense, o Brasil pode, aproveitando suas excelentes relações com países-chave deste bloco, tais como Nigéria, Senegal e Costa do Marfim, impulsionar uma aproximação mais estreita com a CPLP na procura de soluções duradouras para a nossa crise. Isso é deveras importante na justa medida em que um dos desafios para a estabilização definitiva da Guiné-Bissau é como coabitar os diferentes interesses geoestratégicos, por exemplo, de Angola, Nigéria, Senegal e o restante dos países da Cedeao, em torno da Guiné-Bissau. Essas disputas algo alheias aos interesses do povo guineense têm dificultado muito a resolução dos nossos problemas.
As ONGs da Guiné se reuniram em janeiro, em Bissau, com o diplomata brasileiro Antônio Patriota, atual presidente da comissão das Nações Unidas para a Consolidação da Paz. Qual foi o resultado deste encontro?
A reunião do embaixador António Patriota com as organizações da sociedade civil, incluindo a Liga, foi uma excelente oportunidade para ouvir a versão destes atores sociais acerca da situação atual do país e as propostas para a saída da crise. É ainda cedo falar dos resultados, mas estamos convencidos de que por ser a primeira vez que um alto responsável daquela comissão se reune com as organizações da sociedade civil, tomando notas das suas preocupações e propostas para a saída da crise, é muito encorajador. Nós pensamos que na concepção e elaboração dos futuros projetos no quadro do PBF (Fundo da Consolidação da Paz), serão tidas em conta estas ideias da sociedade civil guineense. Contudo, o grande resultado a apontar é o reconhecimento a partir deste encontro, do papel inequívoco das ONGs no processo da democratização e consolidação da paz na Guiné-Bissau. Por isso, nós agradecemos imensamente à Conectas, por ter sido a promotora da iniciativa que culminou com este encontro.
Quais as chances de que as eleições presidenciais e legislativas aconteçam na nova data prevista?
As eleições presidenciais e legislativas previstas para 13 de abril 2014 já são uma realidade, não obstante terem sido sucessivamente adiadas. Neste momento o registo eleitoral terminou em todo o país e na diáspora, as candidaturas foram já validadas pelo STJ (Supremo Tribunal de Justiça) na sua veste de Tribunal Constitucional. A lista provisória dos candidatos foi publicada pelo STJ, sujeita a reclamações. De acordo com esta lista, temos 13 candidatos às eleições presidenciais e 15 partidos para as legislativas. Portanto, a campanha eleitoral vai arrancar no próximo dia 22 de março, simbolizando a irreversibilidade do processo eleitoral.
A eleição é suficiente para pôr fim ao clima de tensão instalado no país após o assassinato de um presidente e um atentado contra um ministro de Estado? Quais as perspectivas para o futuro do país no período pós-eleitoral?
A Guiné-Bissau é uma das referências positivas ao nível da África na realização das eleições credíveis, livres, justas e transparentes. Ou seja, já realizamos inúmeras eleições que cumpriram padrões internacionais exigidas. Quero com isso demonstrar que o nosso problema nunca foi da realização ou não das eleições, mas sim a cultura democrática de aceitar os resultados eleitorais, do outro lado, o exercício do poder outorgado pelo povo a favor dos seus interesses.
Estes foram e continuam a ser os nossos verdadeiros problemas, associados com a cultura de impunidade e de disfuncionamento das instituições judiciais.
Ao longo de mais de uma década de crises sucessivas, dezenas de cidadãos foram assassinados, espancados violentamente, detidos arbitrariamente, incluindo altos dignitários. Os responsáveis por estes atos criminosos nunca foram conduzidos à justiça. Por isso, nós acreditamos que para reduzir a tensão no país e sentimento de ódios derivados do ciclo da impunidade, é urgente e necessário que os próximos responsáveis políticos que resultarão das eleições, estejam em condições de restaurar a autoridade do Estado, reformar a justiça, permitindo que ela seja um verdadeiro fator de equilíbrio e propulsionador de uma reconciliação genuína capaz de pacificar os espíritos e restaurar a autoestima dos guineenses.
Igualmente, a retoma de cooperação com os principais parceiros de desenvolvimento nomeadamente a União Europeia, FMI e o Banco Mundial, se revestem de grande importância.
Tudo isso dependerá também da forma como o poder político será repartido e gerido após as eleições de 13 de abril, mas também como será encontrado o entendimento entre diferentes blocos e estâncias regionais e internacional sobre as formulas de ajudar a Guiné-Bissau a reencontrar a paz rumo ao desenvolvimento sustentado.