Mais de 1,7 mil pessoas se reuniram por três dias no Palácio das Nações, sede do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, para fazer avançar os debates sobre empresas e direitos humanos. Se no primeiro fórum sobre o tema, realizado em 2012, ficou evidente o predomínio das vozes empresariais, associações e consultorias que representavam seus interesse, desta vez a participação da sociedade civil foi ligeiramente maior – o que permitiu que ressoassem casos e histórias sobre situações do mundo real.
A maior presença de organizações da sociedade civil não logrou, no entanto, que suas reivindicações e denúncias conseguissem superar as estritas regras de participação impostas pelos organizadores do evento.
Na teoria, o formato do evento foi pensado para que se ouvissem, em partes iguais, Estados, empresas e sociedade civil. Na prática, a estrutura atendeu a preocupação por parte dos organizadores de não submeter os representantes do setor privado a constrangimentos – uma forma de manter o seu engajamento nas aplicação dos Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos.
Além disso, à exceção da abertura e do encerramento (sessões plenárias), os demais debates ocorreram de forma simultânea. Em alguns momentos, seis painéis tiveram lugar ao mesmo tempo, o que dificultou que os participantes tivessem uma visão completa da reunião.
Assim, à semelhança do Fórum Regional realizado em Medellín em agosto deste ano, assistiu-se a um “diálogo teatral” cuja marca é a ausência de oportunidades reais de confrontar abertamente os fatos e argumentos do setor privado. Ignorou-se, mais uma vez, que apenas um diálogo franco é capaz de gerar mudanças – ainda que, para isso, palavras duras tenham de ser verbalizadas e constrangimentos, tolerados.
Com base na análise minuciosa das estratégias de atuação do Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos, já se previa o predomínio da “disseminação dos Princípios Orientadores e das boas práticas” no programa do fórum.
Um elemento cuja ausência mostrou-se particularmente preocupante foi a da prestação de contas por parte do Grupo de Trabalho e da apresentação de suas prioridades para o futuro – uma conduta incompreensível. O GT tem sido objeto de severas críticas pela interpretação restritiva de seu mandato, pela falta de um processo adequado para tramitação das denúncias e pelo distanciamento das vítimas. Esperava-se que essas questões fossem respondidas durante o fórum.
Ao deixar de lado esse imprescindível exercício de autocrítica, o GT limitou-se a agir como mediador entre Estados, empresas e sociedade civil, sem inserir sua visão sobre os temas nos debates.
Também chamou atenção a falta de uma discussão sobre normas vinculantes para a responsabilização de empresas por abusos de direitos humanos. O assunto já havia retornado oficialmente à pauta do Conselho de Direitos Humanos em sua última sessão, em setembro. Na ocasião, o governo do Equador lançou uma proposta dessa natureza em conjunto com outros 85 países.
O próprio GT havia assinalado na reunião de Medellín que estava estudando a necessidade de criar de uma norma vinculante sobre jurisdição extraterritorial em casos de graves violações aos direitos humanos – proposta tangenciada, por sua vez, por John Ruggie durante o Fórum Global de 2012. Tanto o instrumento vinculante mais genérico capitaneado pelo Equador quanto a norma de caráter mais restrito considerada pelo GT não apareceram na agenda.
Os méritos do encontro foram poucos, mas devem ser mencionados. Um exemplo é a possibilidade de que o debate sobre responsabilização de empresas e Estados por violações cometidas pelo setor privado avance nos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos.
Há, agora, uma expectativa sobre do seguimento, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da audiência celebrada no último período de sessões sobre Indústrias Extrativas. Também são esperados avanços do Grupo de Trabalho sobre Indústrias Extrativas da Comissão Africana. Tudo indica que esses mecanismos farão uso de um marco normativo amplo, que pode incluir os Princípios Orientadores, mas não se limitarão a eles.
O debate sobre instituições financeiras estatais, objeto de painel no qual Conectas esteve presente, foi um espaço importante para contrastar as práticas entre diferentes instituições financeiras públicas e deixou ainda mais em evidência a necessidade do BNDES avançar em temas como transparência, povos indígenas, apoio à democracia e prestação de contas.
Em sua cobertura sobre o Fórum, Conectas lançou a pergunta: a impunidade será levada a sério? A resposta que se pode extrair da reunião é, lamentavelmente, negativa. O painel sobre acesso a remédios judiciais efetivos, talvez o quesito mais urgente e relevante quando se fala em reparação integral às vítimas e responsabilização de empresas perpetradoras de abusos, foi bastante interessante e contou com exposições sobre os obstáculos para o acesso à justiça em casos emblemáticos, como Trafigura e Bophal.
Uma descrição das barreiras a um remédio judicial efetivo são encontradas nos próprios Princípios Orientadores. Elas extensivamente exploradas em debate organizado pela Conectas e pela Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH) em 2012 e em um relatório preparado pela Conectas em parceria com a Comissão Internacional de Juristas. Era necessário, portanto, avançar nas soluções, uma vez que o mapeamento do problema já está bastante completo.
No frio de Genebra, o pequeno protesto organizado na porta da ONU sacudiu um pouco a formalidade do evento e expôs a desconformidade da sociedade civil com o status quo. No próximo ano, as regras e os interesses que impedem um diálogo franco e sincero deverão ser questionados com ainda mais força.