Voltar
-
28/01/2022

Escravidão moderna: como a pandemia e o cenário de miséria contribuem para essa realidade

Nos 18 anos da Chacina de Unaí, Frei Xavier Plassat, da CPT, fala sobre a relação do trabalho escravo com os crimes ambientais, e o aumento no número de fiscalizações e resgates em 2021

O frei Xavier Plassat. Foto: Free The Slaves/Kay Chernush O frei Xavier Plassat. Foto: Free The Slaves/Kay Chernush

No dia 28 de janeiro de 2004, quatro servidores do Ministério do Trabalho, incluindo três auditores do trabalho, foram executados com tiros na cabeça. Os servidores apuravam denúncias de trabalho escravo em fazendas na região de Unaí (MG). Desde 2009, a data da Chacina de Unaí marca o calendário como Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, em homenagem aos auditores Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage, Eratóstenes de Almeida Gonçalves e ao motorista Aílton Pereira de Oliveira. O principal mandante do crime, o ex-prefeito Antério Mânica, sentenciado a 100 anos de prisão, teve a pena anulada pelo TRF1, em 2018, e aguarda novo julgamento. 

Atualmente, a falta de responsabilização pelos crimes é apenas um dos problemas da escravidão contemporânea, já que a pandemia ajudou a agravar ainda mais a situação, de acordo com o frade francês Xavier Plassat. Coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ele argumenta que a precarização das leis trabalhistas e o cenário de miséria — que empurrou mais de 19 milhões de brasileiros para a fome, no último ano —, faz com que as escolhas das pessoas mais vulnerabilizadas sejam reduzidas a trabalhos que as desumanizam. 

Radicado no Brasil desde 1989, Frei Xavier luta há mais de trinta anos pelo fim da escravidão moderna, sem perder a indignação. “Graças a Deus, guardei intacta a capacidade de me rebelar”, afirma ele, lembrando ser um filho das manifestações francesas de Maio de 1968. “Costumo dizer que aprendi na universidade popular das ruas de Paris. Naquela época, tinha 18 anos. Participei da revolução estudantil de corpo e alma. E isso foi fundamental na minha construção. Algumas pessoas se acomodam com as situações, mas hoje vivo numa região em que é difícil se acomodar. Todo dia descobrimos coisas escandalosas.”

Em entrevista à Conectas, falando do município de Araguaína, no Tocantins, o frade dominicano comentou sobre a relação do trabalho escravo com os crimes ambientais, e sobre o aumento do número de fiscalizações e resgates em 2021. 

Conectas – De que forma a pandemia impactou o combate do trabalho escravo no Brasil? 

Frei Xavier Plassat – A situação de pandemia inseriu mais um agravante num quadro já bastante preocupante, marcado por uma taxa elevada e crescente de desemprego, e de desalento dos que precisam de um emprego, além dos efeitos deletérios da reforma trabalhista, que tem no seu bojo uma normalização/legalização de formas abusivas de exploração do trabalho. 

Obviamente, o “libera geral” decretado pelo (des)governo Bolsonaro abriu ainda mais todas as comportas, especialmente pelo descrédito lançado contra toda e qualquer fiscalização estatal (no âmbito trabalhista e ambiental principalmente). A esses fatores, a pandemia acrescentou uma precarização ainda maior a grupos já especialmente vulneráveis, nos remetendo a situações de extrema pobreza e cenários de fome que o Brasil havia em boa parte superado. Quem tem fome tem pressa. Mais que nunca, para muitos brasileiros e brasileiras, qualquer serviço é melhor do que nenhum serviço. 

Conectas – Em um cenário precarizado, as pessoas acabam se submetendo a qualquer tipo de trabalho…

Frei Xavier Plassat – Sim. Indício dessa tendência é o reduzido fluxo de denúncias registrado até pouco tempo atrás: na CPT, nossa Campanha costumava receber uma média de 50 a 100 denúncias de trabalho escravo por ano até 2013. Esse número caiu depois para 10 a 20. Outros canais de denúncia tiveram quedas também. Mas dados recentes mostram que o ritmo de denúncias voltou a aumentar a partir de 2020, e mais ainda em 2021. Na Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) o número duplicou. 

É preciso ainda destacar, entre as dificuldades mais sentidas, que houve um proposital congelamento e depois recuo dos recursos públicos destinados à fiscalização do trabalho, resultando, além de recursos operacionais minguados, no colossal déficit observado no quadro da Auditoria Fiscal do Trabalho: nos últimos dez anos, houve uma redução de cerca de 45% do quadro de Auditores e de quase 70% dos recursos orçamentários para a área. O último concurso público ocorreu em 2013. A demanda existente hoje é para preencher mais de 1.500 vagas, ou seja, cerca de 40% dos cargos teoricamente existentes. 

Por último, o Ministério do Trabalho e Previdência — recriado apenas em julho do ano passado —, é agora o principal atingido pelos vetos do presidente no Orçamento de 2022: se não mudar nada, a pasta levará uma tesourada de R$ 1,005 bilhão do total de R$ 3,184 bilhões de cortes praticados no texto aprovado pelo Congresso. 

Conectas – Ainda assim, houve aumento no número de fiscalizações e resgates em 2021, certo?

Frei Xavier Plassat – Os dados disponíveis para 2021 demonstram uma impressionante atuação da fiscalização, ao mesmo tempo que sinalizam o quão existe, por parte de certos empregadores, uma desenvergonhada tendência de se aproveitar da precarização acentuada da classe trabalhadora. Segundo a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), o ano de 2021 termina com um número recorde de fiscalizações (foram mais de 440 estabelecimentos fiscalizados, contra uma média anual de 262 nos 7 anos anteriores) e de resgates (acima de 1.900, contra média anterior de 1.004). 

Deste total, as ações empreendidas pelo Grupo Móvel de Fiscalização nacional representam 34% (cerca de 150 fiscalizações), evidenciando a elevada atuação por parte das Superintendências regionais (67% do total, ou cerca de 290), a exemplo de Minas Gerais (74 fiscalizações), Goiás (39), Tocantins (22), Rio de Janeiro (22) e São Paulo (21). 

Conectas – E o que explica esse aumento no número de fiscalizações e resgates, considerando o atual cenário precário? 

Frei Xavier Plassat – Difícil saber. Tenho a impressão de que os fiscais fazem milagre — e não digo isso porque sou dominicano. Temos a sorte de ter entre esses fiscais grupos super aguerridos, especialmente em Minas Gerais. Talvez também, por algum tempo, o trabalhador não quisesse denunciar por ter esperança de dias melhores. Mas parece que, em 2021, acabaram-se todos os limites possíveis, estimulando-os a fazer as denúncias. Mas isso é puramente hipotético, não tenho a chave para interpretar com muita clareza. 

Conectas – Entre 2003 e 2014, no Brasil, foram libertados anualmente 3.704 trabalhadores em condições análogas à escravidão, em média, segundo a CPT; nos anos seguintes, entre 2015 e 2020, a média caiu para 941. Essa redução reflete uma melhora no cenário ou invisibilidade dos casos? 

Frei Xavier Plassat – Vários indícios apontam para maior risco de invisibilidade. Para entender a queda acentuada dos números — sempre lembrando que número não é realidade —, é preciso considerar vários fatores que mudaram consideravelmente o cenário da exploração do trabalho, no campo e na cidade, bem como o engajamento da sociedade e do Estado na pauta do combate ao trabalho escravo. 

Nos primeiros anos, o combate ao trabalho escravo ficou essencialmente concentrado na Amazônia, e na região Norte e Centro-Oeste, de onde emergiram as primeiras denúncias de peso (por Pedro Casaldáliga, que ajudou a fundar a CPT). De 2003 até 2012, 71% dos casos identificados e metade dos resgatados foram feitos na Amazônia. O trabalho escravo fora do campo estava quase ausente nos números deste período, representando 4% dos resgatados. As atividades dominantes em que se flagrava o trabalho escravo eram: desmatamento e trato de pastos da pecuária (35%), canaviais (25%), lavouras (19%) e carvoarias (9%). Com uma média anual de 2.500 resgatados entre 2007 e 2009 a cana de açúcar chegou a compor metade do total anual. Seu quase completo sumiço nos anos posteriores é o principal fator de redução do total nacional de resgates. Nisso contribui sumariamente a proibição da queima e a consequente mecanização das operações. Paralelamente, a pressão ambientalista tendeu a maneirar o ritmo do desmatamento. 

Além disso, a chegada da tecnologia, que reduz o componente manual do trabalho, provavelmente também contribuiu para a redução do número médio de trabalhadores encontrados nos estabelecimentos fiscalizados.

Leia mais:

Conectas – De que forma o monitoramento feito em outras regiões também alterou o perfil do tipo de trabalho escravo?

Frei Xavier Plassat – As proporções respectivas de cada tipo de atividade mudaram profundamente: resgates em atividades não rurais passaram a formar uma parte significativa a partir de 2009, representando mais de 1 em cada 4 resgates (média 2013-2021: 28%), incluindo principalmente construção civil (16%), confecção (4%) e serviços diversos (8%). No âmbito rural, além da pecuária (13%) e das monoculturas do agronegócio (34%), se destacaram: carvoaria e extrativismo vegetal (7% cada), bem como mineração e atividade madeireira (5% cada). Após um breve eclipse entre 2013 e 2018, o carvão voltou com mais força nos últimos 3 anos, nas imediações da siderurgia mineira.

A mudança mais visível é justamente a preponderância crescente da região Sudeste nas estatísticas de fiscalização e de resgate: essa região passou nos anos recentes (média 2013-2021) a ser palco de 1 em cada 3 fiscalizações e a representar a metade das pessoas encontradas em condições análogas à da escravidão. Simultaneamente Nordeste (20%) e Centro Oeste (13%) passaram à frente do Norte (12%). 

Se podemos concluir disso que se conseguiu visibilizar situações de trabalho escravo em regiões e atividades anteriormente menos fiscalizadas, subsiste séria dúvida quanto à nossa capacidade de manter visível a realidade do trabalho escravo em regiões que já foram campeãs, especialmente a Amazônia. 

Conectas – A concentração na Amazônia mostra que o trabalho escravo está profundamente relacionado com os crimes ambientais, certo?

Frei Xavier Plassat – A concentração de casos na Amazônia resulta do processo histórico de ocupação da região, incentivado pelo poder público no período do Regime Militar — com base em promessas falaciosas para os pequenos e muito subsídio financeiro para os grandes: “Uma terra sem gente para gente sem terra”. Este processo visou primeiramente converter áreas de floresta nativa em pastos para a criação de gado — e secundariamente, em abastecer em carvão vegetal pólos siderúrgicos instalados em Marabá (PA) e Açailândia (MA), utilizando-se de força de trabalho trazida dos rincões pobres do Norte e do Nordeste. O início das denúncias de trabalho escravo na região do Araguaia (MT e PA) se deu neste contexto — como se lê na carta pastoral de Pedro Casaldáliga, de 1971

Vista a partir de hoje, essa concentração corresponde a um período bem delimitado. Não é mais a caraterística atual, como sinaliza a proporção dos casos identificados e de pessoas resgatadas na Amazônia Legal em relação ao total no país (casos identificados: média anual de 183 casos [74% do total], entre 2003 e 2012, e de 51 casos [36%] entre 2013 e 2021. Pessoas resgatadas: média anual de 2.032 [50%], entre 2003 e 2012, e 274 [20%], entre 2013 e 2021). 

Mas a pergunta relacionando trabalho escravo e os crimes ambientais continua de absoluta atualidade. Para além da Amazônia, onde a situação persiste sempre mais invisibilizada, por conta das limitações impostas à fiscalização tanto ambiental quanto trabalhista, há o avanço das monoculturas sobre o cerrado, no território conhecido como MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). 

Leia mais:

Conectas – E quais são os avanços mais significativos no combate ao trabalho escravo? 

Frei Xavier Plassat – Embora seja uma das políticas públicas que mais incomodam e que mais sofrem críticas e tentativas de retrocesso (como se vê com as sucessivas e fracassadas iniciativas para esvaziar o conceito legal de trabalho escravo do artigo 149 do Código Penal Brasileiro), vejo que o combate ao trabalho escravo foi se consolidando, desde 2003, como política de Estado, tendo efetiva articulação no próprio aparelho do Estado federal e nos Estados, e ativa participação por parte da sociedade civil — são 16 Comissões Estaduais para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae) atuando, além da Conatrae nacional), dentro de um quadro legal e internacionalmente considerado como avançado, sob o amparo de decisões internacionais que nos têm fortalecido. 

Como avanços no período recente, destacam-se: a significativa mobilização em torno de momentos que simbolizam o histórico combate contra o trabalho escravo: 28 de janeiro (Chacina de Unaí) e 13 de maio (Abolição); a produção do filme “Pureza”, de Renato Barbieri, que deve ser lançado em maio; a instituição do Fluxo Nacional por iniciativa da Conatrae; a criação de um sistema nacional de denúncia on-line, o Sistema Ipê; além da aproximação das pautas do trabalho escravo e do tráfico de pessoas, após a implementação do protocolo de Palermo e sua incorporação na legislação nacional (Art.149-A CPB). 

Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas