A Revista SUR, da Conectas, traz na edição 17 um artigo escrito por Serges Alain Djoyou Kamga e Siyambonga Heleba, da Universidade de Joanesburgo, sobre o fato de a África do Sul não conseguir universalizar o acesso a direitos básicos, mesmo com toda a expectativa pós-Apartheid e da construção de um conjunto robusto de garantias constitucionais.
“Apesar do crescimento que podemos enxergar no plano internacional, as pessoas ainda são muito pobres aqui. Muitas pessoas ainda não têm acesso a saneamento básico, água limpa, emprego. Eu diria que a pobreza é uma realidade na África do Sul. Tentamos (no artigo) avaliar e entender por que o crescimento econômico não está se tornando uma realidade e não e traduz em direitos humanos para as pessoas”, diz Kamga.
Revista SUR é publicada pela Conectas em 3 idiomas e distribuída para mais de 100 países.
Leia a íntegra do artigo e veja abaixo os principais trechos da entrevista com os autores:
Conectas – O que os levou a pesquisar este tema e escrever o artigo?
Serges Kamga – Na verdade, pensamos nesse artigo ao nos depararmos com observações básicas. A África do Sul é hoje um país emergente. Ela integra o G20, bem como o bloco Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Isso nos leva a crer que o país tem um bom crescimento econômico. No entanto, há um problema, pois, apesar desse crescimento que podemos enxergar no plano internacional, as pessoas ainda são muito pobres aqui. Muitas pessoas ainda não têm acesso a saneamento básico. Não há acesso a água limpa, emprego. Eu diria que a pobreza é uma realidade na África do Sul. Portanto, com base nessas observações, tentamos avaliar e entender por que o crescimento econômico – reconhecido internacionalmente – não está se tornando uma realidade e não e traduz em direitos humanos para as pessoas. Essa é a ideia do artigo.
Siyambonga Helaba – A África do Sul teve altos níveis de crescimento econômico ao longo dos últimos anos. Os relatórios divulgados pelo governo revelam que um número bastante grande de pessoas passou a ter acesso à moradia. Elas têm acesso a água, eletricidade e outros serviços básicos. No entanto, como disse o meu colega, um grande número de pessoas ainda não têm acesso a esses serviços básicos e, portanto, a África do Sul é um bom exemplo e um estudo de caso interessante para que se compreenda se o crescimento econômico pode se traduzir em acesso a direitos. Assim, acreditamos que seja o melhor país para se debruçar sobre essa questão e é interessante notar que nele há um ambiente propício para que o crescimento se traduza em direitos.
Há diversos artigos na Constituição do país que garantem esses direitos. No entanto, o crescimento econômico por si só não significa o acesso automático a eles e é necessário que esse ambiente tenha ainda outras características. Há que primeiro se contar com um ambiente legal favorável e a África do Sul tem em sua Constituição e em outras leis aprovadas meios para garantir que os direitos expressos na Carta Magna sejam colocados em prática. Além disso, (a Constituição) prevê instituições independentes que monitoram o governo para que ele de fato cumpra as suas obrigações de acordo com o texto constitucional.
Uma das instituições previstas na Constituição é o Judiciário.
Conectas – Exatamente. Num país onde os direitos são garantidos na Constituição, como a África do Sul, qual deve ser o papel do Poder Judiciário? Não deveria ser o de garantir que o crescimento econômico fosse traduzido em acesso a direitos?
Siyambonga Helaba – Há uma expectativa de que o Judiciário garanta que, em situações nas quais o governo não pareça interessado ou mesmo capaz de assegurar esses direitos, as pessoas possam recorrer aos tribunais para garantir que a administração preste contas do porquê um grande número de pessoas ainda não ter acesso a serviços básicos apesar do crescimento econômico.
Os tribunais se mostraram sensíveis aos direitos previstos na Constituição nos últimos anos. Podemos citar alguns dos principais casos: o caso Grootboom, responsável pelo fato de o governo ter criado leis que asseguram que os sem-teto, aquelas pessoas em situação desesperadora, situações de emergência, recebam cuidados básicos, e também que não exista apenas um plano para efetivar seus direitos a longo prazo, mas que exista um plano para atender às necessidades de curto prazo. O caso Grootboom é um dos principais exemplos do tipo de mudança que se pode ver em um país quando os tribunais são sensíveis (à Constituição).
Na área da saúde, os juízes também foram os responsáveis por forçar o governo a fornecer Nevirapina, (o remédio) que garante que as mães soropositivas não transmitam HIV/AIDS aos seus bebês. Isso é algo que se deve ao Judiciário. O fato de os residentes permanentes no país agora desfrutarem de benefícios básicos da previdência social também é fruto de decisões judiciais.
No entanto, o Judiciário também acaba sendo mal visto, apesar das conquistas evidentes. Alguns juízes ignoram e muitas vezes fecham os olhos em relação às próprias obrigações constitucionais. Um exemplo disso é como alguns juízes se recusaram sistematicamente a exigir que o governo fornecesse uma definição do que é a base mínima de serviços de assistência social, postergando a efetivação de alguns direitos importantes expressos na Constituição e levando a Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais a se manifestar publicamente. Nossos tribunais têm dito que esse não é o papel deles e em muitos casos invocam a doutrina da separação dos poderes. Assim, ao mesmo tempo em que os juízes foram bastante ágeis e criaram uma jurisprudência admirável na área dos direitos sociais, eles também perderam oportunidades de impactar mais e poderiam ter ampliado o acesso a direitos em casos importantes. E o fato de eles invocarem a doutrina da separação de poderes, os leva a não se envolverem nos casos em que o governo é acusado de não fornecer esses serviços. Então, ao (não) requisitarem que o governo se responsabilize em situações nas quais serviços essenciais não foram prestados, uma grande quantidade de pessoas continua sem acesso (a esses serviços básicos).
Serges Kamga – Quero apenas acrescentar que os juízes devem evitar postergar decisões, simplesmente adiando seu dever de interpretar questões legislativas ou executivas.
O tribunal deve assumir a responsabilidade de fazer do crescimento econômico um direito para aqueles que dele necessitam.