O texto-base do Projeto de Lei que trata do combate a notícias falsas na internet foi aprovado no Senado no final de junho. A votação durou cerca de 5 horas e não contou com audiências públicas prévias que possibilitassem uma discussão mais aprofundada sobre o tema, resultando em uma vitória de 44 votos aos favoráveis à medida contra 32 de parlamentares que se opõem. A proposta seguiu para a Câmara.
Enquanto o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP) ressalta que “a nova lei é imprescindível para a proteção da vida de todos os brasileiros”, diversas organizações e movimentos da sociedade civil que atuam na pauta de direitos digitais e, assim como as próprias empresas de tecnologia, apontam ressalvas e preocupação com o teor da futura lei, caso ela avance no Congresso e seja sancionada pelo presidente.
Para o InternetLab, centro independente de pesquisa sobre direito e tecnologia, o projeto atropela direitos e possui pontos potencialmente inconstitucionais. Da mesma forma, as plataformas Facebook, Google, Twitter e WhatsApp afirmam que a proposta as obriga a realizar uma coleta massiva de dados, mesmo contra uma grande maioria de pessoas sobre as quais não se recaem qualquer tipo de suspeita de atividade fraudulenta ou criminosa na internet. Isso, apontam, viola a segurança e a privacidade de toda a sociedade. A entidade reforça o posicionamento da Coalizão Direitos na Rede, da qual é integrante.
A afirmação condiz com alerta feito pela ONU, nesta terça-feira (14). Para o Relator Especial das Nações Unidas sobre Direito à Privacidade, Joe Cannataci, o Projeto de Lei das Fake News, como foi apelidado no Brasil, é uma ameaça ao direito à privacidade, à democracia e às liberdades civis. O relator encaminhou carta às autoridades brasileiras orientando que o projeto seja revisto.
Para entender melhor sobre o assunto, conversamos com Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab. Especialista em monitorar políticas públicas ligadas à tecnologia, Francisco explica as origens do projeto, suas alterações durante a tramitação do texto pelo Senado e, sobretudo, quais alertas a sociedade civil apontam em relação ao PL. Confira:
Conectas – Como nasceu o Projeto de Lei das Fake News?
Francisco Brito Cruz – Esta agenda de ter que fazer alguma coisa sobre a questão das fake news não nasceu com este PL. Ela veio à tona com a Eleição de Trump, nos EUA, e, no Brasil, mais recentemente com a eleição do Bolsonaro. Desde então, alguns debates já foram travados sobre isso. Juridicamente falando, em termos regulatórios a coisa começou a esquentar a partir do inquérito instaurado pelo Supremo Tribunal Federal e pela investigação eleitoral no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) – que, na verdade, trata muito mais sobre a questão de caixa dois do que sobre fake news -, além da própria CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das Fake News, que condensou todo este processo desde o ano passado.
A CPMI instalada no Congresso serviu como uma espécie de centro gravitacional sobre este tema. Todos os protagonistas envolvidos hoje nas discussões sobre este projeto de lei, seja no Senado ou na Câmara, são aqueles que já estavam envolvidos na CPMI. Então, muitas das disputas travadas hoje acerca deste PL nasceram na CPMI, nasceram da ansiedade destes parlamentares.
Paralelamente, entre o final do ano passado e começo deste, o gabinete do grupo Acredito – movimento de renovação política fundado por políticos de diferentes partidos -, protagonizado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e pelos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), decidiu gestar um projeto de lei, que é este que estamos discutindo.
Nesta época, já havia muitas propostas neste mesmo sentido. Porém, começou a ficar mais claro de que este seria o principal projeto a ser discutido a partir da pandemia. Tivemos a sinalização de que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), estavam decididos que este projeto avançasse porque entendiam tinha um perfil mais democrático e menos punitivista.
A estratégia foi que o senador Alessandro Vieira propusesse o projeto no Senado. Quando isso ocorreu, Davi Alcolumbre escolheu o senador Angelo Coronel (PSD- BA) como relator, já que ele tinha sido presidente da CPMI das Fake News.
O problema deste processo é que o Angelo Coronel não fez uma mesa de negociação. Durante quatro semanas, sabíamos que o projeto estava pautado para ser votado, mas ninguém sabia qual era o texto final.
Conectas – Como o projeto se modificou durante sua tramitação?
Francisco Brito Cruz – Em sua concepção, o projeto não era criminal. A base da proposta construída pelo Acredito era de que é necessário que as plataformas privilegiem o combate à desinformação a partir do estabelecimento de obrigações ligadas à checagem de fatos. Ou seja, o dever de que plataformas como Facebook, Instagram e etc. mostrem aos usuários se uma determinada informação é correta ou falsa.
O grande problema dessa concepção é que ela não foi conversada com quem faz checagens de fatos. As agências de checagem são contra a serem obrigadas por lei a fazer este tipo de checagem para estas grandes plataformas porque são pequenas e não querem assumir essa responsabilidade.
Depois que o texto caiu na relatoria do Angelo Coronel muita coisa mudou. Cada dia aparecia uma coisa nova. A proposta começou a ser capturada por interesses econômicos e corporativos. Corporativo porque autoridades de investigação querem expandir sua capacidade de investigação, então, quanto mais dados coletados e armazenados e quanto mais mecanismos de identificação, melhor. Estes grupos exercem pressão quando perceberam a janela de oportunidades.
E econômico porque conglomerados de mídia entraram no jogo sob o discurso de combater o monopólio dessas empresas de tecnologia. Claramente, a ideia era usar este processo para combater seus concorrentes digitais, então, quanto mais o processo fosse constrangedor regulatoriamente para as plataformas, melhor.
Conectas – Como foi atuação da sociedade civil neste tema?
Francisco Brito Cruz – Uma reflexão importante a ser feita é que desde o início nós tentamos argumentar que esta proposta não devia ser votada. Argumentamos sobre os problemas de se decidir sobre isso em meio a uma pandemia, no qual todas as deliberações estão sendo feitas de forma remota. Falamos sobre como o processo estava sendo conduzido às pressas, sem tempo para diálogo e debate com a sociedade. O Marco Civil da Internet demorou cerca de quatro anos para ser votado porque houve amplo debate.
Mas tudo isso não teve efeito. Os presidentes das duas casas não se sensibilizam com estas questões. E como todos estes debates, assim como a pauta do plenário, estão sendo discutidos nas reuniões do colégio de líderes, que é uma reunião com poucos parlamentares, e as discussões não passam por outras comissões, entendemos que não havia como obstruir esta pauta. Essa é a loucura do processo.
Pensando, então, que o projeto seria votado de qualquer forma, tentamos avaliar quais são as narrativas que fazem bem ao texto, ou seja, quais são as partes boas, e quais são as narrativas que a gente tem que evitar, a partes ruins.
Conectas – Quais são os pontos positivos do projeto?
Francisco Brito Cruz – A narrativa que consideramos boa é a da transparência. Estas plataformas, de fato, são empresas muito grandes e elas têm uma responsabilidade enorme no debate público. É necessário saber quais medidas elas estão tomando, seja em relação às contas e conteúdos de usuários, seja contra a desinformação. É importante sabermos quais são os dados qualitativos e quantitativos. Não só isso, transparência é importante em relação a anúncios, especialmente anúncios políticos e eleitorais. E também outras disposições de transparência que tem a ver com esta chamada “moderação de conteúdo”, ou seja, a aplicação dos termos de uso privado destas plataformas. É importante, por exemplo, estar neste projeto de lei a obrigação de que as plataformas digam a razão pela qual estão tirando um determinado conteúdo, e ainda garantir o direito a recurso do usuário e à reparação a danos que elas acabem causando, se for o caso.
Já visando combater a desinformação, junto com a narrativa de transparência consideramos importante haver uma narrativa que foque no comportamento abusivo e não no conteúdo. Isso quer dizer, por exemplo, que pode haver robôs [programas usados em plataformas para disparar mensagens automáticas, entre outras funções], mas deve estar escrito que aquele perfil é um robô, e não uma pessoa ou uma empresa. O mesmo vale para o disparo em massa. Não importa, portanto, se o conteúdo é lícito ou ilícito, bom ou ruim. O importante é que o disparo em massa é uma conduta que faz mal ao debate público, especialmente se feito sem a anuência das pessoas que irão receber esta mensagem e por isso deve ser coibido.
Somado a isso, tem a narrativa de se distribuir responsabilidades. A ideia de que o setor público, por exemplo, também deva estar submetido a regras, não apenas as plataformas. Acreditamos que as plataformas sozinhas não irão resolver este problema da desinformação.
Estes são pontos que já estão no projeto e que consideramos que sejam frutíferos.
Conectas – Quais são os pontos negativos?
Francisco Brito Cruz – Já as narrativas que constam no projeto e que não são frutíferas são a narrativa punitivista, ou seja, achar que esse problema se resolve criando crimes a torto e direito e aumentando penas; e a narrativa vigilantista, ou seja, esta ideia de se coletar massivamente dados de usuários para posteriores investigações. Nesse ponto específico entra a ideia da rastreabilidade do WhatsApp.
Na avaliação do InternetLab, assim como da Coalizão Direitos na Rede – rede independente formada por mais de 40 entidades da sociedade civil – este é o pior ponto do texto.
A ideia é que o WhatsApp seja obrigado a guardar registros do que eles chamam de “encaminhamento em massa”, que é o encaminhamento de mensagens para mais de cinco grupos e que atinja, ao menos, mil pessoas. Por mais que tenha este desenho de uma ação que só vai atingir as mensagens que atingem mil pessoas, na verdade, este ponto possui muitos problemas. Primeiro porque para operacionalizar isso todas as mensagens terão que ser registradas, já que o próprio Whatsapp não tem como saber se uma mensagem potencialmente pode alcançar mil pessoas ou não. Depois, porque trata todo o conteúdo que é possivelmente viral e que alcance mil pessoas como algo suspeito. Isso não faz sentido.
A rastreabilidade, portanto, nitidamente fere direitos e é inconstitucional porque obriga empresas a guardar dados sobre pessoas inocentes de maneira totalmente desnecessárias à prestação do serviço oferecido.
Por fim, tem a narrativa do “Follow the Money” (Seguir o dinheiro, em tradução livre). Ou seja, é a ideia de buscar quem está financiando a desinformação. Por um lado, isso levanta a noção de que existem pessoas vendendo serviços e que há uma indústria de desinformação, com gente vendendo seguidores na internet, por exemplo. Isso é fraude e deve ser combatido.
Porém, é necessário ter cautela. Se para a ação de seguir o dinheiro na internet for necessário definir o que é “desinformação”, a iniciativa será um risco do ponto de vista de proteção de expressões legítimas.
Não pode haver um conceito de desinformação, na nossa opinião e da Coalizão Direitos na Rede, porque este conceito será necessariamente amplo e genérico, o que pode abrir brechas se retirar todo e qualquer tipo de conteúdo.
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Nesta quinta (16), o InternetLab lançou um documento que apresenta uma série de recomendações para o enfrentamento ao comportamento abusivo na internet.