Sem políticas públicas que os amparem, os moradores da região da Cracolândia, no centro de São Paulo (SP), vivem em constante ataque. Em uma iniciativa recente, que aconteceu em março de 2021 — quando a pandemia vivia seu ápice no Brasil —, cerca de 400 famílias foram ameaçadas de expulsão de suas casas pela prefeitura da cidade. Somente 190 desses lares estavam cadastrados para receber o auxílio-aluguel de R$ 400, um valor muito abaixo para o custo de vida da região. A preocupação era que essas pessoas fossem parar na rua, em meio a maior crise sanitária dos últimos tempos.
A DPESP (Defensoria Pública do Estado de São Paulo) e a Conectas apresentaram um pedido de medida cautelar à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e uma oficio ao CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), que recomendou aos órgãos do Poder Judiciário que, “enquanto perdurar a situação de pandemia de covid-19, avaliem com especial cautela o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, sobretudo nas hipóteses que envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica”.
A Justiça suspendeu a remoção, mas os moradores ainda enfrentam os avanços da especulação imobiliária, já que os dois quarteirões previstos para serem derrubados fazem parte da ação de revitalização do lugar. “Fizemos o apelo à CIDH porque queríamos exigir que preservassem tanto a vida quanto a integridade física e os bens daquelas pessoas, e que apresentassem um plano articulando seus direitos”, apontou a defensora pública Fernanda Balera, do Núcleo de Direitos Humanos da DPESP. “A expectativa é que a CIDH se pronuncie sobre o caso.”
Para Balera, o discurso de “Guerra às Drogas” contribui para a manutenção de abusos cometidos na região. “Sob o manto de uma atuação efetiva no combate às drogas são praticadas inúmeras violações de direitos”, assegura. À Conectas, a advogada explicou o contexto de quem vive na Cracolândia e sugeriu caminhos para solucionar os problemas.
Fernanda Balera – Aquela é uma região de complexidade sanitária, social, econômica, urbanística, política e cultural. Ao longo do tempo, sucessivas políticas públicas se sobrepuseram umas às outras, como o programa Nova Luz, o Braços Abertos e o Redenção. Com diferentes abordagens, elas sempre são feitas na base de tentativa e erro, causando um custo humano muito alto, além de um custo de dinheiro público, e não surtem efeito nenhum. O problema maior é que essas políticas públicas não têm uma diretriz clara. No geral, a única coisa em comum ao longo do tempo é a repressão e a violência policial. Isso nunca mudou.
No entanto, existem iniciativas independentes de ONGs e coletivos que apresentam uma perspectiva diferente das ações do Estado, a exemplo do “Coletivo Tem Sentimento”, que trabalha na inclusão de mulheres trans da região através do trabalho e da geração de renda. Durante a pandemia, por exemplo, essas mulheres ganharam dinheiro produzindo máscaras. Tem o “É de Lei”, que já faz trabalhos na região há muito tempo, e as iniciativas do psiquiatra Flávio Falcone, que são baseadas na ideia de fornecer uma moradia para então articular acesso a outros direitos. Além disso, tem o pessoal que trabalha com arte. Em setembro, o Sesc Bom Retiro fez uma exposição chamada “Birico – Poéticas autônomas em fluxo”, com artistas que têm trabalhos na Cracolândia. Essas iniciativas não veem as pessoas como zumbis ou objetos que precisam de intervenção do Estado, mas, sim, como sujeitos de direito, que podem construir uma história.
Fernanda Balera – Quando João Dória assumiu a prefeitura, ele decretou o fim da Cracolândia, com ações extremamente violentas que deixaram milhares de pessoas na rua, além de internações compulsórias que se revelaram um grande fracasso. Fizemos uma pesquisa e descobrimos que grande parte dessas internações não duravam nem o tempo suficiente para a desintoxicação, e posteriormente a pessoa voltava à cena de uso de drogas. Ou seja, era mais uma ação higienista do que preocupação em resolver o problema.
Depois disso, houve uma articulação entre o Ministério Público, a Defensoria e alguns conselhos para desenhar um programa que, no papel, não era ruim, mas não chegou a ser implementado. O maior desafio é implementar uma política tanto de álcool e drogas quanto para as pessoas em situação de rua que consiga promover direitos e romper a situação de vulnerabilidade social. Para isso, é preciso implementar os projetos que estão inscritos e levar em consideração os direitos que as pessoas têm.
Fernanda Balera – Infelizmente, essas ações são muito comuns, porque a GCM atua de forma extremamente violenta, tornando a vida naquele território mais insuportável do que já é. Tem um dossiê feito pela Craco Resiste, com filmagens mostrando que a GCM pratica ações violentas de modo sistemático, dando início a maioria dos conflitos que acontecem ali. No caso do Sr. José Damião, que é uma pessoa em situação de rua, ele estava indo pegar uma marmita no fluxo, quando foi atingido no olho por um guarda, e não foi socorrido. A ação ainda está em andamento, e é um exemplo das dificuldades que temos com ações de pessoas em situação de rua, com as quais perdemos o contato ou temos dificuldade de conseguir provas. Algumas ações conseguem a responsabilização, mas não é sempre que isso acontece.
Fernanda Balera – Ela foi indeferida, mas achamos importante pontuar, porque essa questão da compra de fuzis reforça o caráter militar da guarda, que é justamente o que a gente vem problematizando. É função da GCM exercer a função de policiamento ostensivo? Como deveria ser a atuação da guarda lá? Na representação, a gente problematiza como o uso de fuzis numa região que já é caracterizada por violência extrema pode intensificar ainda mais o problema e contribuir pouco com a solução, uma vez que a violência lá sempre existiu e nunca solucionou nada.
Fernanda Balera – Acho que a atual política de drogas e a legislação reguladora sobre drogas já mostraram que não são eficientes nem efetivas. Muitas vidas são perdidas em nome de uma guerra que tem como principais inimigas as pessoas negras, pobres e em vulnerabilidade social, que são justamente as que estão ali naquele território. Então, a “Guerra às Drogas” tem um papel central, porque é esse discurso que legitima as ações violadoras de direitos que acontecem na Cracolândia. Sob o manto de uma atuação efetiva no combate às drogas são praticadas inúmeras violações de direitos.