Entrevista: mulheres da Maré no enfrentamento à pandemia de covid-19

A historiadora Angélica Ferrarez articula dados da pandemia com relatos do cotidiano pandêmico no Complexo de Favelas da Maré (RJ)

Angélica Ferrarez doutora em História Política e mestra em História Social da Cultura (Foto: Arquivo Pessoal)

As respostas  à crise causada pela pandemia de Covid-19 na favela vieram, em grande parte, do próprio território. No Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro, a criatividade das mulheres negras possibilitou que a vida continuasse a pulsar pelas comunidades. Essa é uma das observações que a historiadora Angélica Ferrarez apresenta em seu ensaio “Vozes femininas na favela: relatos do cotidiano pandêmico no Rio de Janeiro”, publicado na edição 31 da Revista Sur. 

Ferrarez é doutora em História Política (UERJ) e mestra em História Social da Cultura (PUC/RJ). Atua como pesquisadora no Núcleo de Memória e Identidade da Redes da Maré. Em seu texto, ela articula os relatos das mulheres com os dados do “Mapa social do corona”, boletim produzido pelo Observatório de Favelas. A pesquisadora foi uma das quatro bolsistas da Sur 31. Para a Conectas, ela traz alguns elementos de seu texto. 

Acompanhe a entrevista: 

Conectas – Na introdução do seu ensaio, logo de cara, está a pergunta “como os/as moradores/as da Maré responderam ao desequilíbrio mundial que foi/está sendo a pandemia do coronavírus?”, hoje, após a produção do texto, como você responderia a ela? 

Angélica Ferrarez – Essa foi a pergunta que motivou meu texto e é a pergunta que a gente ainda vive. Eu sou do Rio de Janeiro e passei todo esse primeiro ano nevrálgico da pandemia em Salvador. Eu queria observar o Rio de Janeiro de um outro espaço para poder ver melhor. E funcionou. Inclusive para ver a potência da Maré dentro desse território da cidade do Rio. E aí fiquei me perguntando como a Maré estava lidando com a pandemia. O “fica em casa” não aconteceu na Maré. Agora, muita coisa aconteceu,de criatividade, de jogo de cintura, do cotidiano, do dia-a-dia, de como os próprios moradores respondem às questões onde a participação do Estado é muito efêmera. Eu justamente pensei no cotidiano, na vida nas ruas, nas sociabilidades. [Durante os período mais críticos da pandemia] na Maré, houve um esvaziamento de outros sentidos e também houve o uso da rua de outras maneiras. É isso que eu tento desenvolver no meu texto e muito pela perspectiva das mulheres. 

Conectas – O que significa a “metodologia das aspas” presente em seu texto?

Angélica Ferrarez – Queria que fosse um texto que trouxesse as vozes das mulheres do conjunto de favelas da Maré, um texto que indicasse que existe um espaço de dialogia, ou seja, tem um diálogo acontecendo, não é só voz da “especialista” [que está escrevendo], da pesquisadora que está observando. A metodologia das aspas é justamente trazer essas vozes porque tudo o que está dentro das aspas é pensamento das mulheres. Todas as aspas são das mulheres. A ideia era justamente cruzar essas falas em primeira pessoa com o boletim sobre o coronavírus, que começou a ser produzido pelo Observatório de Favelas. A metodologia das aspas é justamente fazer com que o público-leitor, essa terceira pessoa, consiga ler o texto e escutar as vozes dessas mulheres. 

Conectas –  O texto extrai histórias femininas no contexto pandêmico. A partir disso, quais conclusões podem ser destacadas relacionando questões de gênero e pandemia?

Angélica Ferrarez – Acho que pensar como essas mulheres organizam as coisas é mais caminho do que conclusão. Elas organizam a família, o território. No contexto de favela, onde os homens são o maior número na mira do tiro, muitas mulheres se tornam arrendo de família. Uma das coisas que me chamou a atenção na pandemia foi  o caminho de trabalho que essas mulheres realizam.

No texto, tem um exemplo de uma mulher que durante a semana é empregada doméstica em uma casa na zona sul do Rio de Janeiro. Com a pandemia, essa família diminuiu a carga horária e o dinheiro. Então, ela entrou no negócio de distribuição de quentinhas, o que não é algo novo na Maré. Mas qual foi a inovação? Quentinha FIT, produto para dieta e produto low carb. O mais interessante foi ela envolver toda a família nisso: os sobrinhos que estavam sem aula, porque a aula online nem sempre funcionava, passaram a entregar as quentinhas de bicicleta e a mãe, aposentada, ficou junto na produção de comida, dentro de casa. Têm muitos caminhos de criação e de criatividade. bell hooks, Grada Kilomba e outras intelectuais negras falam o quanto os mecanismos de opressão fazem com que  processos de criação e de criatividade floresçam. A gente cria muito a partir desses lugares de repressão e de opressão. 

Conectas – Após ouvir as vozes das mulheres da Maré para o artigo, quais memórias te marcaram?

Angélica Ferrarez – Eu fiz, na verdade, um ensaio bem otimista porque parto justamente da criação, da criatividade. Mas como se cria a partir da margem? Tento costurar um texto muito positivo por conta do esforço do trabalho. Não é nada romântico, é trabalho de mulheres negras. Ofereço meu texto a dona Vitória, que foi uma pessoa que eu não encontrei mais no território [quando voltei para o Rio de Janeiro, em 2021]. Eu estava pensando nessas griôs da Maré, mulheres que se reconhecem como velhas sábias. Griô é o narrador na África Ocidental, é aquela pessoa que tem sabedoria, um saber fazer que não está em livros. A Maré é um lugar onde ainda existem rezadeiras, parteiras…Eu falo de uma senhora que as pessoas começaram a ir mais na casa dela procurando a cura e ela diz “eu não tenho a cura, mas eu tenho os banhos que posso te indicar, tenho umas garrafadas”. Em 2020, algumas dessas senhoras faleceram e foram elas – as griôs, as mais velhas, as sábias, as pretas velhas – que me convidaram a mergulhar no território da Maré. A partir daí, você descola um monte de informação que já vem colada com a imagem da favela: imagem de violência, de marginalização e fome.

Em momentos de pandemia, quando a pessoa vai no postinho de saúde e não consegue atendimento, ela volta para a Maré e vai bater na casa da Dona Vitória, por exemplo. Dona Vitória não tem a cura, mas tem muitos caminhos de bem viver… Ela tem, na verdade, muitos outros caminhos de cuidado, de autocuidado. Ela não vai ter a cura da Covid, mas ela receitou muita coisa e as pessoas fizeram muito bom uso da presença dela, enquanto a presença dela era visível. Essas mulheres que me emocionam. 

Leia também a entrevista “Como a covid-19 impactou a comunidade indígena Boca da Mata“, com Yara Pinho de Lima, indígena do povo Macuxi e antropóloga e autora na Sur 31.