Antes de se tornar uma das maiores referências na luta por direitos LGBTI+ do Brasil, a paraense Symmy Larrat enfrentou o afastamento da família e até tentativas de “cura gay”. “Há quase que uma validação de parcela da população para essa agressão que a gente sofre”, acredita ela.
Definindo-se como puta, travestchy e feminista, Symmy foi a primeira pessoa trans a ocupar a função de coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, ainda no governo de Dilma Rousseff; além de ter sido coordenadora do programa “Transcidadania”, na prefeitura de São Paulo. Hoje, ocupa a presidência da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), uma das maiores da América Latina.
Em entrevista à Conectas, ela fala sobre luta, resistência e como tornar a sociedade mais humana:
Conectas – Para você, quais foram os principais avanços da comunidade LGBTI+ nos últimos anos?
Symmy Larrat – Sem dúvida, os principais avanços foram aqueles conquistados pelo STF, como a criminalização da LGBTfobia e a possibilidade de alteração de documentos de pessoas trans sem a necessidade da cirurgia de redesignação sexual. O sentimento que a gente tem é que, por tudo ter vindo pelo STF, mesmo tendo força de lei, as pessoas têm dificuldade de entendimento daquilo que não é tipificado na legislação. A gente tem dificuldade de aplicar essas conquistas na vida real. Há uma dificuldade de capilarização. E as burocracias vão fazendo com que esses direitos não sejam acessados em sua plenitude.
Fora do STF, tem o processo transexualizador no SUS, que ainda continua como um direito, mas tem a questão do acesso, que é uma outra história. Por exemplo, o número de cirurgias, que já eram poucas e não atendiam nem 5% da população total de pessoas transgêneras, diminuiu porque não tem mais recursos. Esse governo é tão hipócrita e covarde que ele mantém o nome, mas esvazia todo o programa.
Conectas – Sobre essa questão do acesso, é importante ressaltar que, mesmo dentro da comunidade LGBTI+, questões de raça e classe também têm uma influência, certo?
Symmy Larrat – As pessoas que estão mais longe da norma são as mais propensas a sofrerem violências e exclusões. Ou seja, se a norma é branca, hétero e cisgênera, as pessoas que são negras, homossexuais ou trangêneras estão distantes dela. E vários marcadores vão se somando para criar essa distância, como idade também. Isso não é uma narrativa limitante, é a realidade.
Eu coordenei um Centro de Cidadania em São Paulo e um Centro de Promoção e Defesa em Salvador. A realidade é a mesma. Se a gente for ver os dados, quem procura os serviços de apoio para ver questões de conflito em local de trabalho e casamento, por exemplo, são pessoas de uma classe média mais alta, ou seja, são pessoas que se casam e conseguem trabalho. Agora, se você for ver quem procura orientação por conta de violência, benefícios de assistência social, no geral, são LGBTs negras ou que não performam de acordo com as normas da cisgeneridade. Existe um recorte muito nítido.
Conectas – No começo de 2021, observamos ataques a parlamentares negras e travestis e trans, em São Paulo. Como você vê isso?
Symmy Larrat – Isso é uma reação ao nosso avanço. Cada vez que avançamos, essa reação aumenta, porque as pessoas não nos querem ali. Nós conquistamos direitos a partir de migalhas, e, para a cisgeneridade, a gente tem que se contentar com isso, que já é muito. Assim, nossos direitos não são fortalecidos e ficamos fragilizadas para acessar essas conquistas. Sabendo disso, eles reagem para que a gente recue. O que me espanta é que, mesmo tendo uma Constituição neste país, com esferas democráticas definidas, a gente não dá conta de vencer a narrativa que nos coloca como vergonha, pecado e culpadas pelo que sofremos. Há quase que uma validação de parcela da população para essa agressão que a gente sofre.
Conectas – E a pauta conservadora continua avançando com o governo Bolsonaro…
Symmy Larrat – Isso mostra que essa ameaça continua e é legitimada. Enquanto campo progressista — para não falar só de esquerda —, a gente não está entendendo que a narrativa moral é peça central no debate do momento. Se a gente não vencer a moralidade, a gente não vai vencer as outras coisas. Não vamos conseguir promover direitos, não vamos tirar esse discurso do poder, porque o que está arraigado na população é o debate moral. É essa pauta moral que se coloca sobre a questão de gênero. Por exemplo, tem uma questão moralizante em cima da pauta indigena também, essa ideia de que são preguiçosos, sujos, incivilizados, de que é preciso educá-los.
Conectas – Por que a conquista de direitos para a população LGBTI+ é importante para a sociedade como um todo?
Symmy Larrat – Porque quando a gente promove inclusão e respeito, a gente está falando de humanidade, estamos construindo e resgatando a nossa humanidade. Precisamos falar sobre o que não é falado para criarmos relações que sejam mais respeitosas e que não excluam ninguém. É assim que a sociedade se torna mais humana.
Conectas – Apesar de estatísticas que mostram o alto índice de violência contra a população T e a baixa empregabilidade, há pessoas que, como você, ocupam lugares de destaque. Qual é a importância de exemplos como o seu?
Symmy Larrat – Eu vejo a minha trajetória, não vejo o meu lugar. Em que lugar eu estou? Estou gestora de projetos em uma ONG, então se a gente capta recurso eu tenho salário, se não capta, não tenho. É um lugar mais cômodo do que a imensa maioria das minhas companheiras, mas é um lugar ainda diferente do de outras pessoas cisgêneras e héterossexuais que eu conheço Então é e não é um lugar. Mas, se olharmos para a trajetória, com certeza. É importante que as pessoas percebam que essa imagem estereotipada de pessoas trans não é bem assim. Uma pessoa transgênera em um espaço de poder não representa só uma pessoa transgênera, ela pode ser negra, ser nortista, como eu, ser LGBTI+ como um todo. Então tem um exercício de representatividade que eu acho que contribui para o processo de humanização da sociedade.
Conectas – E o que você aprendeu ocupando esses lugares de poder?
Symmy Larrat – Que a gente incomoda, mas que tem muita gente bacana que vem com a gente. Então se atraímos essas pessoas, que exercem essa questão da representatividade, é preciso continuar incomodando até que o incômodo não exista mais.