A vida de Dandara Rudsan não pode ser dissociada de sua luta pela defesa dos direitos humanos. “Foi a própria luta pela defesa dos direitos humanos que me resgatou e que colocou a Dandara no mundo”, afirma a ativista, que é articuladora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, fundadora do Coletivo Amazônico LesBiTrans e do Nepaz (Núcleo Estratégico de Direitos Humanos e Promoção da Paz).
Em 2012, depois de se formar em direito na cidade de Araguaína (TO), ela precisou voltar a Altamira (PA) para ajudar os pais, que corriam o risco de serem desapropriados para a construção da usina de Belo Monte. Ao mesmo tempo, passava por um processo de transição de gênero e acabou sendo expulsa de casa.
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Hoje, aos 32 anos, fazendo mestrado em antropologia, em Belém, Dandara luta pelo direito das mulheres transexuais, travestis e cisgêneras que vivem literalmente à margem. Por quase dois anos, ela própria viveu em situação de rua, tentando conseguir comida durante o dia na cidade, e atravessando o rio Xingu de balsa para passar a noite na floresta. “Isso me causou uma devastação mental que até hoje luto para reparar. Sobreviver foi um grande desafio não só externo, mas interno também. Precisei lutar para não deixar de acreditar em mim mesma”, conta, lembrando da importância do movimento negro para sua recuperação. “O movimento negro me situou em outro lugar, como uma mulher operadora do direito. Foi estando dentro do movimento que entendi qual era a minha missão, colocar minha vida e meus esforços em prol disso foi o que me resgatou.”
À Conectas, a ativista falou sobre a importância das redes de contato e das dificuldades de visibilizar as questões das mulheres trans e travestis que vivem na Amazônia.
Dandara Rudsan – A palavra que define é desafio. É um desafio muito grande, um desafio pela própria vida. Mas corremos esse risco. Enquanto mulher preta travesti, eu não tenho outra escolha, porque defender os direitos humanos é defender minha própria vida.
Fazer parte desse recorte representa um desafio maior, porque não temos uma legislação forte que nos proteja. Tudo que mulheres travestis e transexuais têm são portarias, resoluções, jurisprudências muito difíceis de alcançar. São coisas que uma tremida na democracia já faz cair por terra. Por mais que as mulheres cisgêneras também enfrentem desafios, elas têm, por exemplo, a Lei Maria da Penha e convenções internacionais que versam especificamente sobre elas, uma vez que o conceito que a sociedade tem de mulher é um conceito cisgênero. Isso nos coloca em um lugar de vulnerabilidade e invisibilidade da proteção legal. E quando adentramos na questão da defesa dos direitos humanos, isso se acirra ainda mais.
Um exemplo muito claro são os protestos. A quantidade de mulheres cisgêneras em um protesto como o do dia 8 de março, por exemplo, é muito maior. Imagina se um evento desses é reprimido. As mulheres cisgêneras terão um mecanismo diferente das transgêneras. Nós estamos praticamente desprotegidas. Por isso, defender os direitos humanos sendo uma mulher travesti é muito mais desafiador.
Dandara Rudsan – Quando a sociedade vê um corpo travesti, não se importa se ela é instruída ou não. A letalidade é a mesma. Eu, mesmo sendo graduada em direito e pós-graduada, tenho medo de sair de casa, tenho minhas técnicas de segurança. Tenho 32 anos e vivo em um país no qual a expectativa de vida de uma travesti é de 35. Tenho muito medo de não chegar lá. É um desafio geral, independente da instrução.
Nós que fazemos parte dessa pequena porcentagem que conseguiu ocupar espaço no nível superior temos um outro desafio, que é criar mecanismos para pleitear mudanças de políticas públicas, e mobilizar aquelas companheiras que não possuem essas ferramentas, para que elas ocupem os mesmos espaços. A presença política é muito importante para que a gente consiga melhorias.
Dandara Rudsan – O principal desafio é conseguir comunicar o que acontece aqui para o restante do Brasil, visibilizar a realidade das mulheres trans e travestis que vivem nos rios e nas florestas. Por isso, friso a importância das redes. Quando pensamos em mulheres travestis e transexuais, nós as imaginamos em contextos urbanos, não imaginamos a vida daquelas que vivem na beira do rio, que são pescadoras, que trabalham na agricultura familiar alimentando esse país, nas que são extrativistas ou artesãs.
Pelo 14º ano consecutivo, segundo a Antra, o Brasil é o país que mais assassina mulheres travestis, transexuais e pessoas transgêneras no mundo. Imagina se fossem contabilizadas aquelas que morrem nos rios e nas florestas anônimas? A visibilidade na Amazônia é uma questão que está atrelada diretamente à sobrevivência.
Mas, de uma maneira geral, a grande dificuldade tanto na Amazônia, no estado do Pará, quanto no resto do Brasil, é a sensibilização. Porque as travestis e transexuais não são apenas assassinadas, elas são assassinadas com requintes de crueldade. Ano passado, três de nós tiveram seus corpos queimados em praça pública. Não se veem protestos em massa, ou mobilizações. A sensibilidade com o corpo travesti que tomba é muito rasa, não existe.
Dandara Rudsan – Exatamente, essa é a gênese do LesBiTrans, porque Altamira é uma cidade extremamete religiosa, uma cidade do interior onde o próprio movimento feminista não toca em pautas como o aborto, como o uso de drogas, porque lá os principais movimentos foram fundados a partir das comunidades eclesiais de base, nos anos 90. Então, hoje, o conservadorismo é muito enraizado, e isso reflete nas lutas. O LesBiTrans é o primeiro coletivo LGBT+ de Altamira a atuar exclusivamente na pauta dos direitos humanos da comunidade LGBT+. Já existiram outros movimentos, mas que trabalhavam só com a parte cultural, não tratava a questão dos direitos humanos com afinco. Nosso principal objetivo é construir pontes e tocar em pautas que não são comumente tocadas. É um desafio gigantesco.
Dandara Rudsan – A primeira grande ponte que construímos foi com o Fundo Elas. Não falo só pelo apoio financeiro, mas também pelas articulações que ele nos possibilitou, através do evento Mulheres em Movimento, que reúne defensoras de várias partes do mundo. Graças a isso o LesBiTrans conseguiu articular redes que se mantêm até hoje. Depois disso, ainda conseguimos o apoio do Fundo Brasil, que também se mantém.
Mais recentemente, nos orgulhamos de ter contribuído com a formação do Comunema (Coletivo de Mulheres Negras Maria-Maria), que é um coletivo de mulheres negras cisgêneras, com as quais articulamos em conjunto. Estamos revolucionando a agenda porque é o primeiro grupo de mulheres cis e trans que se unem para tratar de pautas delicadas que outros movimentos não querem nem tocar. Nos alinhamos e só conseguimos sobreviver em Altamira por conta das alianças que construímos fora. Por isso, friso a importância das redes.
Dandara Rudsan – Através do Itaú Unibanco e do Instituto +Diversidade conseguimos formar um curso de quatro turmas voltado para empregabilidade exclusiva para mulheres LGBTs. Além disso, o LesBiTrans é uma das entidades que compõem a Coalizão Negra por Direitos, e, durante a pandemia inteira, conseguimos distribuir, em Altamira, nos últimos dois anos, mais de 3 mil cestas básicas para pessoas LGBTs, assim como kits de proteção contra Covid.
Outra conquista recente foi a criação, em parceria com o Comunema, do Núcleo Estratégico de Direitos Humanos e Promoção da Paz, que foi premiado pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), no Prêmio República 2021.
Dandara Rudsan – O Nepaz é um núcleo que recebe, qualifica e encaminha denúncias de violações de direitos contra mulheres travestis, transsexuais e cisgêneras que vivem no rio e na floresta. Recebemos denúncias, inclusive, via rádio amador e as encaminhamos aos órgãos competentes. De maneira geral, o grande sucesso do Nepaz é poder ser uma ponte de acesso para todas essas companheiras. Além disso, a partir de conversas coletivas entre os movimentos de mulheres e LGBTs, conseguimos estabelecer o primeiro Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, em Altamira.
Dandara Rudsan – Eu sou um reflexo das minhas companheiras. Quando vejo uma delas sendo inspirada pela minha fala ou um projeto que participei, me retroalimento disso. Eu me vejo nelas. Quando uma mulher violentada se encontra, o poder dela explode, e isso é incrível, me fortalece muito, porque eu também me encontro. Somos nós nos conectando e nos afirmando enquanto mulheres.