Uma das principais bandeiras do governo Bolsonaro, a educação domiciliar, prática conhecida como homeschooling, enfrenta oposição de organizações da sociedade civil especializadas em educação e direitos humanos. Na avaliação de especialistas, a modalidade educacional pode agravar as desigualdades sociais do país e dificultar a apuração de outros problemas graves, como maus tratos, abusos e insegurança alimentar.
Apesar desses problemas, propostas legislativas para regularizar o homeschooling avançam no Congresso Nacional. Mais de 400 ONGs e movimentos sociais contrários à prática afirmaram, em um manifesto, que a regulamentação de uma modalidade que ataca as finalidades da educação, previstas no artigo 205 da Constituição Federal, amplia a desobrigação do Estado com a garantia do direito humano à educação de qualidade para todas as pessoas e fere os direitos das crianças e adolescentes.
De acordo com a assessora do programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas, Maryuri Grisales, “o homeschooling atende a demanda de um grupo relativamente pequeno, alinhado a pautas conservadoras, mas, caso seja implementado como política pública na área educacional, pode prejudicar toda a população brasileira”. Ainda segundo ela, a solução para melhorar a educação não está em transferir a responsabilidade exclusivamente para as famílias e, consequentemente, enfraquecer a escola pública. “As pessoas responsáveis pelas crianças e adolescentes devem, evidentemente, participar do processo de formação. Mas isso deve ser feito no ambiente escolar, de forma coletiva, com a participação de gestores, professores e outros responsáveis. A comunidade escolar é fundamental na formação cidadã e ética das pessoas”.
Insegurança alimentar, casos de trabalho infantil e agressões, violência doméstica e sexual podem ficar ainda mais invisiveis se os estudantes deixarem as escolas. Isso porque, como lembra Grisales, muitas dessas situações graves ocorrem dentro dos domicílios e a escola ocupa um papel fundamental na identificação destes problemas e no encaminhamento para os órgãos responsável, como os conselhos tutelares, investigarem.
De acordo com o documento assinado pelas organizações sociais, esse quadro também pode levar o Estado a ter “gastos extras com a fiscalização e adequação de suas estruturas e corpo funcional para acompanhar as matrículas e as respectivas atividades não presenciais previstas na proposta de regulamentação da educação domiciliar”. Isto sem falar no acompanhamento social, físico e mental das crianças confinadas em seus domicílios – ainda que muito limitado, já que há transferência do espaço público ao privado.”
Para o professor da USP Luciano Nakabashi não se trata apenas de liberdade de escolha sobre o ensino, pois existem “algumas razões” que fazem do ensino tradicional, com as crianças indo para as escolas, o mais indicado para o país. Ela cita, em sua coluna na Rádio USP, três dessas razões, fundamentando que, em primeiro lugar, as escolas são os locais onde existem profissionais formados e com experiência para transmitir conhecimentos amplos às crianças. Em segundo, ressalta a questão da socialização: a interação de crianças de diversass famílias e com diferentes ideias é “importante para o aprendizado e amadurecimento das crianças”. A terceira razão é que o ensino tradicional, “hoje, é o que temos de melhor”, avalia o professor, mesmo considerando as várias deficiências do país, inclusive na área da educação.
“A escola sempre foi um lugar social importante, um lugar de desenvolvimento pessoal e coletivo. É importante defender o direito à educação e fortalecê-lo com investimento em ensino integral, capital humano, incluindo remuneração digna para professoras e professores, assim como outras políticas públicas realmente transformadoras. O homeschooling, por sua vez, vai contra isso”, acrescenta Grisales.