Uma empresa deve ser responsabilizada quando um prestador de serviço comete crimes ambientais para lhe entregar uma matéria prima? É dever de uma companhia monitorar se seus funcionários terceirizados estão trabalhando em condições dignas? Para organizações da sociedade civil que atuam na área de devida diligência em direitos humanos as respostas a estas perguntas é sim.
Devida diligência em direitos humanos é o termo utilizado para designar processos de governança empresarial alinhados com obrigações e compromissos de proteção e promoção de direitos humanos. Isto se dá por meio da identificação, prevenção, mitigação e responsabilização de danos que causem ou contribuam através de suas atividades e operações em toda a cadeia produtiva (conjunto de atividades necessárias para a produção, distribuição e comercialização de bens e serviços, que abarca desde a extração e manuseio da matéria-prima até a distribuição do produto).
Além de adotar boas práticas, as empresas devem prestar contas e divulgar os riscos e impactos de suas atividades, consultando todos atores envolvidos e avaliando continuamente a efetividade das medidas adotadas. Por exemplo, se uma companhia pretende construir uma hidrelétrica, é preciso avaliar todos os impactos socioambientais para a determinada região, consultando especialistas em diferentes áreas e dando especial atenção para as pessoas que vivem na região, respeitando inclusive seus modos de vida e culturas, no caso de ribeirinhos e indígenas.
O documento Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, aprovado em 2011 pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e editado em português pela Conectas em 2012, apresenta norteadores importantes para o setor empresarial. O documento tem três pilares: os Estados são obrigados a proteger os direitos humanos, as empresas são responsáveis em respeitá-los e, em caso de descumprimentos destes direitos, é preciso buscar recursos adequados e eficazes para reparação dos danos e violações.
Para tanto, os Princípios Orientadores apresentam quatro etapas a serem seguidas: avaliação de riscos e impactos, integração de ações de prevenção e controle de riscos e impactos aos direitos na gestão empresarial, monitoramento das ações adotadas e divulgação e comunicação das ações adotadas.
O documento salienta também que estes processos devem ser contínuos, considerando que os riscos para os direitos humanos podem mudar no decorrer do tempo, em função da evolução das operações e do contexto operacional das empresas.
As leis de devida diligência da França, de 2017, e da Alemanha, de 2021, são bons e importantes exemplos, embora ainda seja cedo para determinar o real impacto de sua implementação. Mas já há algum tipo de legislação sobre o tema na Noruega, Califórnia (Estados Unidos), Reino Unido, Holanda, Austrália, além de legislações que englobam os países-membros da União Europeia. Bélgica e Áustria também deram início a uma discussão legislativa a respeito do assunto.
Essas leis divergem quanto ao tipo de coercitividade e de obrigações, exigindo diferentes graus de transparência, controle e responsabilidade sobre a cadeia produtiva. Algumas geraram importantes mudanças nas práticas empresariais e nos hábitos dos consumidores, outras tiveram pouca aplicabilidade prática. Todas, no entanto, devem ter sua importância reconhecida, por terem trazido luz ao tema e servido de inspiração e modelo para a criação de outras legislações, inclusive mais completas.
Não há consenso. O Brasil já conta com importantes normas que permitem responsabilizar empresas que cometem violações de direitos humanos. Há também normas que exigem certo grau de prevenção a possíveis danos e até mesmo que concedem incentivos para empresas que adotem práticas socioambientais responsáveis.
O sistema normativo brasileiro de combate ao trabalho escravo e de proteção ambiental, por exemplo, é internacionalmente reconhecido e valorizado. Importantes instrumentos criados no Brasil, como a Lista Suja, são considerados modelos de referência por organismos internacionais.
É consenso, no entanto, que há uma insuficiência de mecanismos que assegurem e obriguem uma governança e atuação empresarial alinhada a obrigações e compromissos de proteção e promoção de direitos humanos e que exijam transparência da cadeia produtiva ou que estabeleçam obrigações para além do fornecedor direto. Isso ocorre em razão de inúmeros fatores: lacunas na própria legislação, omissão das autoridades de fiscalização e repressão, divergências na interpretação e na aplicação das normas, demora nas punições, além de outras questões mais profundas e estruturais de nossa sociedade, como o racismo, a concentração fundiária e a desigualdade social.
Esses fatores são explorados pelas empresas e devem ser corrigidos, seja através da alteração das normas já existentes, seja através da elaboração de uma nova norma. A conclusão sobre qual seria a melhor opção demanda uma ampla e profunda discussão que envolva toda a sociedade.
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Sim. Os desafios atuais no Brasil passam pela necessidade de enfrentar as tentativas federais e legislativas em desmontar ferramentas de proteção dos direitos socioambientais e trabalhistas já consolidadas, a exemplo da recente tentantiva do governo Bolsonaro de esvaziar o recursos destinados para fiscalizações trabalhistas, prejudicando as ações de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil, e da aprovação, na Câmara dos Deputados, do projeto de lei que fragiliza as atuais exigências sobre licenciamento ambiental.
A sociedade civil tem papel importante na discussão do tema, seja ao apresentar, para sociedade, os modelos de legislação já existentes, ao denunciar as lacunas existentes no Brasil ou até mesmo ao propor alternativas para a superação destas.
Cabe ainda aos atores da sociedade civil cobrar do Estado formas eficientes de monitorar, fiscalizar e responsabilizar as empresas por violações de direitos humanos. As leis não podem apenas delegar às empresas, é preciso manter mecanismos externos de controle. Órgãos fiscalizadores, como a Secretária de Inspeção do Trabalho e o Ibama, precisam ser bem estruturados e independentes. Por fim, atuar para evitar retrocessos no campo das leis que protegem os direitos humanos, ambientais e trabalhistas em diferentes frentes é também função de organizações não governamentais.