Quando a Justiça de um país do Continente Americano falha em garantir os direitos humanos de um cidadão – seja ele de qualquer raça, cor, credo, gênero ou classe social – a alternativa é recorrer ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A medida é vista como a última saída diante de abusos cometidos por um governo contra uma pessoa ou coletivo – ou diante de omissões dos Estados em casos de violações.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, criada em 1959, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 1978, compõem, juntas, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Ambos órgãos foram decisivos na proteção das vítimas das ditaduras latino-americanas. E ainda hoje cumprem um papel crucial diante de casos agudos de violação dos direitos humanos.
Mas, embora este Sistema tenha contribuído enormemente para a defesa dos direitos humanos ao longo das últimas décadas, alguns países deram início recentemente a um processo de crítica aberta, especialmente contra a Comissão. Em alguns casos, as críticas têm a intenção de aprimorar o Sistema, já em outros a motivação de limitar a efetividade do órgão ou mesmo exingui-lo é nítida e preocupante.
Preocupada com o rumo do debate – e particularmente com o papel do Brasil, que chegou a suspender seus aportes financeiros ao Sistema e retirou seu embaixador do órgão depois de a Comissão emitir medida cautelar contra a construção da Usina de Belo Monte – Conectas tomou diversas medidas para ressaltar a importância desta instância e defender seu aprimoramento.
+ Histórico
Em junho de 2011, perante uma serie de propostas de reformas estruturais, o Conselho Permanente da OEA instituiu o Grupo de Trabalho Especial de Reflexão sobre o Funcionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e para o Fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (Grupo de Trabalho ou GT).
+ O papel do Brasil no processo
O Itamaraty reluta em debater publicamente no Brasil sua posição sobre o processo de enfraquecimento do Sistema.
O membro da Assessoria Especial da Presidência da República, Guilherme de Aguiar Patriota, publicou um artigo no jornal Folha de S. Paulo sobre o Sistema, no dia 7de agosto de 2012.
No mesmo espaço, a professora do Instituto de Relações Internacionais da USP, Deisy Ventura; a professora de Direitos Humanos na PUC-SP, Flávia Piovesan; e a diretora de Programas da Conectas, Juana Kweitel publicaram no jornal Folha de S. Paulo o artigo Sistema Americano Sob Forte Ataque, na seção Tendências e Debates, analisando o papel do Brasil no processo.
Muito embora o Brasil não tenha se posicionado publicamente pelo enfraquecimento da Comissão, suas iniciativas durante todo o processo conduzido pelo GT deram força e voz aos Estados contrários à independência e autonomia da CIDH. O fato de o Brasil ter adotado postura de escasso diálogo com sociedade civil no Brasil e de não ter se manifestado publicamente de forma enfática contra propostas claras de desestruturação do Sistema Interamericano que foram feitas ao longo do processo reforça o entendimento propagado de que ele está corroborando para minar a efetividade da Comissão.
+ Acesso à informação
Para saber conhecer e entender a posição do Brasil – e para promover um debate público, transparente e colaborativo sobre a política externa brasileira – Conectas decidiu usar a Lei de Acesso à Informação (12.527/2011), que entrou em vigor no Brasil no dia 16 de maio de 2012.
A organização pediu acesso aos telegramas oficiais do Itamaraty que contivessem as orientações dadas por Brasília à sua missão diplomática na OEA.
Mas as informações foram seguidamente negadas – primeiro no próprio Ministério das Relações Exteriores, em duas ocasiões diferentes.
Diante das sistemáticas negativas de acesso do Itamaraty, Conectas vem explorando as vias de recursos previstas na Lei, incluindo o pedido de desclassificação dos documentos sigilosos com vistas à efetividade do novo paradigma que define a transparência como regra e o sigilo, exceção.
“Esperamos com isso não apenas saber realmente qual foi a posição do Brasil no processo, mas, ao fazer isso, esperamos também contribuir para o aprimoramento da própria Lei de Acesso à Informação no País”, disse Juana Kweitel, diretora de Programas da Conectas Direitos Humanos.
+ Vozes
“Não adianta firmar tratados internacionais se não houver instâncias para fiscalizar seu cumprimento”
Como forma de ampliar as vozes da sociedade civil envolvida neste tema, incluindo a academia brasileira na reflexão sobre os rumos de um organismo tão importante, Conectas pediu a opinião da professora do Instituto de Relações Internacionais da USP, Deisy Ventura. Ela respondeu três questionamentos chave sobre o assunto e gravou um depoimento em vídeo, pedindo que o Brasil explicite sua posição no caso.
Por que a Conectas diz que o Sistema Interamericano está sob ataque? Que fatos demonstram isso? Quem e como está atacando?
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) está sob ataque porque um grupo de Estados – especialmente Brasil, Colômbia, Equador e Venezuela – busca restringir suas competências, em particular a capacidade da Comissão Interamericana de DH de adotar medidas cautelares em casos graves e urgentes.
O pior é que o processo de reforma do SIDH é apresentado como uma iniciativa de – fortalecimento do sistema, quando, na verdade, o debilita.
Qual a utilidade do Sistema Interamericano? Por que ele deve ser preservado?
O SIDH deve ser preservado porque de nada adianta assinar tratados internacionais de direitos humanos se não existem instâncias capazes de fiscalizar o seu cumprimento. Dois golpes recentes, em Honduras e no Paraguai, que ficaram impunes, bem demonstram o quanto a OEA precisa de dentes. Não se trata de pensar em órgãos de defesa ou de segurança, mas de fortalecer os órgãos especializados em direitos humanos, para que sejam capazes de sancionar o desrespeito ao Estado de Direito.
Há críticas razoáveis sendo feitas ao Sistema? É preciso ter melhoras pontuais? Quais seriam elas?
As melhoras pontuais de que o sistema precisa são a permanência de seus órgãos (que hoje se reúnem em algumas sessões durante o ano), um grande investimento material (hoje apenas 6% do orçamento da OEA vai para o SIDH) e de recursos humanos para que o trabalho dos comissários e juízes se torne mais ágil.
Leia também o texto O Brasil e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: de Maria da Penha a Belo Monte, escrito pela professora Deisy Ventura, do Instituto de Relações Internacionais da USP, e sua graduanda em Relações Internacionais e bolsista de Iniciação Científica da Fapesp, Raísa Ortiz Cetra, apresentado no Seminário Internacional Limites e Possibilidades da Justiça de Transição – Impunidades, Direitos e Democracia, organizado pelo Grupo de Pesquisa CNPq Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição da PUC-RS, pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e pelo Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (Idejust), em Porto Alegre, no dia 2 de abril de 2012.
+ Vídeo
“Se o Brasil entrou no jogo internacional, há que cumpri-lo de boa fé”
Depois da professora do Instituto de Relações Internacionais da USP, Deisy Ventura, foi a vez de Flávia Piovesan, professora de Direitos Humanos e Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que também integra o Grupo de Trabalho da OEA cujo mandato é monitorar o Protocolo de San Salvador, questionar o governo brasileiro sobre sua real posição diante dos ataques sofridos pelo Sistema.
Flávia disse estar “preocupada com o movimento que visa a debilitação e o enfraquecimento” do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Segundo ela, o Brasil é um dos “protagonistas deste processo” que põe em risco uma instância fundamental de defesa dos direitos dos cidadãos do continente americano contra agressões de seus estados.
“Qual é exatamente a ambição do Brasil com esse projeto de reforma do Sistema? Será que o Brasil está calculando qual o real comprometimento do Sistema?”, pergunto Flávia. Segundo ela, a posição brasileira tem criado condições para que outros países – “que não são recordistas de respeito aos direitos humanos” – se valham dessa janela para “restringir a potencialidade, a capacidade do Sistema”.
Flávia também pediu que “se o Brasil defende o Sistema Interamericano, que o faça levantando a bandeira de um sistema independente, autônomo; e que respeite as decisões”.
Mudança de atitude
“O pós Belo Monte mostra uma atitude extremamente agressiva, de atacar o Sistema. É claro que o Brasil pode criticá-lo. Mas, se entrou no jogo internacional, há que cumpri-lo de boa fé”, disse a professora.
“Que a sua insatisfação (do Brasil) com relação a um caso não se transforme de forma perniciosa e perversa em destruição, em erosão de todo um sistema extremamente valioso, o mais importante sistema internacional de proteção de direitos humanos no caso brasileiro, no caso da nossa região”, pediu Flávia.
Ela lembrou ainda que a região tem uma “enorme gratidão pelo Sistema Interamericano, um sistema que salvou vidas, cumprindo a função extraordinária de democratizar a nossa região, na consolidação do Estado de Direito e do regime de direitos humanos”.
+ Vídeo
+ Depoimentos
Rodrigo Uprimny Yepes
diretor do Centro de Estudos de Direito, Justiça e Sociedade (Dejusticia), Colômbia
“Eu creio que o Sistema Interamericano, em especial o seu mecanismo de medidas cautelares, se faz fundamental para proteger vidas, especialmente a vida de ativistas que defendem os direitos dos trabalhadores, como sindicalistas, e os direitos das comunidades indígenas e dos setores excluídos. É por isso que eu creio que um país como o Brasil, que possui um poder específico na América Latina e que é governado por um governo progressista, não poderia cair em contradição com sua própria visão política e afetar este sistema de medidas cautelares e este Sistema Interamericano que tão bem tem feito ao direito dos excluídos não apenas na Colômbia, mas em toda a região.”
David Lobatón Palacios
advogado do Centro de Defesa Legal, Peru
“Eu pediria ao governo do Brasil que avalie a trajetória histórica que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem e a contribuição que, sem dúvida, deu para o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos em nossos países. Isso é claro no caso do Peru e creio que, também, no fortalecimento da democracia no Brasil. O balanço geral é sem dúvida muito positivo e é preciso tomar todas as medidas que levem ao fortalecimento dele”.
Gastón Chillier
diretor executivo do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), Argentina
“O Cels usa o Sistema Interamericano de direitos humanos desde que nasceu, durante a ditadura, e segue usando durante a democracia. Pela nossa experiência, a Comissão Interamericana tem sido de grande importância para a proteção dos Direitos Humanos. Por isso nós acreditamos que o Brasil, que hoje tem o papel de liderança global e regional indiscutível, tem de apoiar a Comissão Interamericana neste processo em que se discutem as suas funções e seu futuro no sentido de realmente fortalecer a Comissão para que ela seja um órgão efetivo de proteção aos direitos humanos.”
Victoria Amato
Fundación para el Debido Proceso Legal (DPLF), Estados Unidos
“Quero mandar uma mensagem para o Brasil sobre a importância do país no futuro do Sistema Intermamericano de Direitos Humanos devido à sua posição como líder regional na América Latina. Quero que o Brasil reforce o papel do Sistema Interamericano na região e que as futuras ações que serão tomadas se destinem a seguir fortalecendo e a seguir dando às vítimas um mecanismo de proteção dos seus direitos”.
+ Ações da Conectas
Contribuições para o debate do GT (em espanhol)
Comentários e Avaliação do Informe Final do GT (em espanhol)