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09/06/2015

Dossiê: Desigualdade no sistema de justiça

CNJ vota hoje adoção de ações afirmativas para ingresso na magistratura

CNJ vota hoje adoção de ações afirmativas para ingresso na magistratura CNJ vota hoje adoção de ações afirmativas para ingresso na magistratura

Um importante passo para garantir maior representatividade da população negra nos espaços de decisão foi

dado nesta terça-feira (9/2) pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Os conselheiros aprovaram procedimento que institui ações afirmativas nos concursos públicos para ingresso na magistratura, destinando 20% das vagas para candidatos negros (pretos e partos, segundo a classificação do IBGE).

Leia aqui a íntegra da proposta aprovada.

O texto se apoia no Censo do Poder Judiciário, publicado pelo CNJ em junho de 2014. O levantamento destaca que apenas 1,4 % dos juízes se autodeclaram pretos e 14,2%, pardos. Ainda segundo o censo, 64,1% dos juízes brasileiros são homens e 82,8%, brancos.

Organizações de direitos humanos saudaram a decisão. Em parecer enviado ao CNJ em fevereiro de 2013 em apoio à adoção de ações afirmativas pelo Judiciário, Conectas e JusDh (Articulação Justiça e Direitos Humanos) afirmam que “a população negra está afastada dos espaços de poder onde são tomadas decisões sobre os bens coletivos” e pedem mudanças no processo de seleção de juízes, que hoje “mede mais investimento e menos conhecimento”.

“Na medida em que a seleção por meio de concurso implica em determinadas condicões de alto teor econômico para a candidatura (oportunidade e possibilidade para dedicação exclusiva a uma atividade onerosa [curso preparatório] de médio prazo), ela acaba fazendo um filtro daqueles que têm mais condições financeiras de se candidatar”, diz o documento.

Leia aqui a íntegra do parecer.

Leia aqui artigo publicado na Revista da Associação de Juízes para Democracia.

Após a publicação do texto pelo CNJ, caberá aos Tribunais de Justiça estaduais adotar a nova norma nos próximos concursos públicos e monitorar sua correta aplicação, alcançando potenciais beneficiários. “Além da efetiva adoção das ações afirmativas na magistratura, é importante que os demais órgãos do Judiciário, como o Conselho Nacional do Ministério Público e as Defensorias Públicas, sigam a iniciativa do CNJ”, afirma Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da Conectas. “Só assim será possível criar, de fato, uma Justiça menos desigual.”

Judiciário

A demanda por mais igualdade racial nos espaços de decisão é histórica e deriva da desigualdade de renda e de acesso ao ensino e às instituições políticas. A implantação de ações afirmativas para ingresso nas universidades, adotada pelo Estado brasileiro há mais de 10 anos, é responsável por importante ampliação dos direitos de grupos sociais excluídos, tornando as universidades mais representativas e plurais.

Essas mudanças progressivas ainda não conseguiram reverter, no entanto, a baixa presença de negros no sistema de justiça. “O recrutamento precisa ser plural, garantindo a diversidade do horizonte social e interpretativo dos juízes”, afirma Custódio. “Com as ações afirmativas, será possível romper com a atual homogeneidade do sistema de justiça.”

De acordo com o Censo do CNJ, o número de negros nos Tribunais Superiores não chega a 10% dos magistrados:

O mesmo cenário já havia sido identificado em Pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), de 2014, do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Segundo o estudo, pardos e pretos correspondem a apenas 22,7% dos juristas e advogados do funcionalismo público.

“O cenário não só demonstra o caráter altamente excludente da Justiça brasileira, mas reafirma a necessidade de discutir a extensão das ações afirmativas para as outras instituições do sistema, como o Ministério Público e a Defensoria”, defende Custódio.

Ministério Público

Em setembro de 2014, Conectas participou de audiência pública sobre a adoção de cotas raciais nos concursos do Ministério Público, realizada pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) em Brasília. Na ocasião, em parceria com a JusDh e CEERT (Centro de Estudo das Relações e Trabalho e Desigualdade), apresentou manifestação no Processo Administrativo instaurado pelo CNMP para discutir o tema.

Leia aqui a íntegra da manifestação da Conectas, JUSDH e CEERT.

Apesar de não ter realizado censo entre seus membros, como o CNJ fez com o Judiciário, o CNMP solicitou informações separadas para todos os MPs do País. As informações foram anexadas ao procedimento e mostram que a desigualdade racial também impera no Ministério Público.

O MP do Rio de Janeiro declarou que, entre 910 promotores, apenas quatro são negros. O MP da Bahia conta com nove negros entre 470 promotores. A situação é ainda mais grave no Rio Grande do Sul, onde nenhum dos aproximadamente 700 promotores é negro. O MP do Distrito Federal alegou ter dez negros entre seus 370 promotores. O MP de Minas Gerais afirmou possuir 87 promotores negros num universo de 1003.

“O Ministério Público não reflete hoje, em termos de raça, a diversidade da sociedade brasileira. Uma das razões para isso é a forma de ingresso na carreira, que favorece um mesmo perfil de candidatos. Em geral, são aqueles que não passaram pelas piores condições de exclusão e desigualdade”, aponta Sheila de Carvalho, advogada do programa de Justiça da Conectas.

Em sua fala no Conselho do Ministério Público, a advogada ressaltou a naturalização da ausência da representação da população negra nos espaços de poder:

Assista:

Defensoria Pública

O debate sobre a desigualdade racial nas carreiras também está presente nas Defensorias Públicas. O Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo decidiu recentemente sobre a implementação de políticas de ação afirmativa para ingresso na carreira de defensor, servidor e estagiário da instituição. Em sessão histórica, o Conselho reservou 20% das vagas para negros e indígenas. Conectas, JusDh e CEERT apresentaram parecer apoiando o texto.

“O que estava em jogo era a consolidação de uma Defensoria Pública mais plural e democrática. Uma Defensoria que possibilite repensar e reinventar a representação social nas instituições do sistema de justiça,” ressalta Sheila de Carvalho.

Leia aqui a íntegra do parecer da Conectas, JusDh e CEERT.

Leia aqui artigo publicado pela Conectas, CEERT e Instituto Luiz Gama.

O que diz a Legislação

As ações afirmativas são plenamente compatíveis com a Constituição Federal. Os art. 3º, III, art. 23, x e art. 170, VIII obrigam expressamente o Poder Público a estabelecer políticas positivas visando à promoção e integração de segmentos desfavorecidos.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal já decidiu em 26/04/2012, no julgamento da ADPF 186, que as políticas afirmativas são constitucionais, já que buscam efetivar princípios e direitos fundamentais da Constituição brasileira, e que as normas proibitivas,como a Lei 7716/1989, não são suficientes para reduzir a discriminação.

Além disso, a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada há décadas pelo Brasil, estabelece que essas medidas afirmativas são essenciais para assegurar o exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais por grupos étnicos-raciais, tendo o Brasil se comprometido, na assinatura do documento, a empreender todos os esforços possíveis para efetivá-las.

Mais recentemente entrou em vigor o Estatuto da Igualdade Racial, que tem por objetivo a promoção da igualdade e o combate à discriminação. Ele determina que o Poder Público deve realizar ações afirmativas tanto no âmbito educacional quanto no mercado de trabalho.

Desafio histórico

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010, publicados em 2012, mais da metade da população brasileira (50,7%) é negra, além de ser formada, em sua maioria, por mulheres (são quase 4 milhões a mais do que homens).

Na população com 25 anos ou mais, o percentual de pretos com curso superior completo (4,7%) é três vezes menor que o de brancos (15%). Os dados mostram também que os negros são mais de 82,3% entre os mais pobres e somente 16,3% entre os mais ricos.

Em relatório publicado em setembro de 2014, a ONU confirma denúncia histórica dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, no Brasil o racismo é estrutural e institucionalizado.

Estudos apontam que os negros estão sobrerrepresentados nos nichos profissionais menos valorizados (construção civil, comércio ambulante e setor de serviços), ao passo que estão sub-representados em ocupações mais valorizadas pela sociedade (justiça, comércio não-ambulante, profissões liberais, ramo de serviços auxiliares de atividades econômicas).

“Uma sociedade heterogênea e diversificada como a nossa merece um sistema de justiça equivalente, que tenha ferramentas na luta pela redução da desigualdade racial e das manifestações do racismo na sociedade brasileira, inclusive na própria carreira dessas instituições”, declara Rafael Custódio.

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