Um importante passo para garantir maior representatividade da população negra nos espaços de decisão foi
dado nesta terça-feira (9/2) pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Os conselheiros aprovaram procedimento que institui ações afirmativas nos concursos públicos para ingresso na magistratura, destinando 20% das vagas para candidatos negros (pretos e partos, segundo a classificação do IBGE).
Leia aqui a íntegra da proposta aprovada.
O texto se apoia no Censo do Poder Judiciário, publicado pelo CNJ em junho de 2014. O levantamento destaca que apenas 1,4 % dos juízes se autodeclaram pretos e 14,2%, pardos. Ainda segundo o censo, 64,1% dos juízes brasileiros são homens e 82,8%, brancos.
Organizações de direitos humanos saudaram a decisão. Em parecer enviado ao CNJ em fevereiro de 2013 em apoio à adoção de ações afirmativas pelo Judiciário, Conectas e JusDh (Articulação Justiça e Direitos Humanos) afirmam que “a população negra está afastada dos espaços de poder onde são tomadas decisões sobre os bens coletivos” e pedem mudanças no processo de seleção de juízes, que hoje “mede mais investimento e menos conhecimento”.
“Na medida em que a seleção por meio de concurso implica em determinadas condicões de alto teor econômico para a candidatura (oportunidade e possibilidade para dedicação exclusiva a uma atividade onerosa [curso preparatório] de médio prazo), ela acaba fazendo um filtro daqueles que têm mais condições financeiras de se candidatar”, diz o documento.
Leia aqui a íntegra do parecer.
Leia aqui artigo publicado na Revista da Associação de Juízes para Democracia.
Após a publicação do texto pelo CNJ, caberá aos Tribunais de Justiça estaduais adotar a nova norma nos próximos concursos públicos e monitorar sua correta aplicação, alcançando potenciais beneficiários. “Além da efetiva adoção das ações afirmativas na magistratura, é importante que os demais órgãos do Judiciário, como o Conselho Nacional do Ministério Público e as Defensorias Públicas, sigam a iniciativa do CNJ”, afirma Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da Conectas. “Só assim será possível criar, de fato, uma Justiça menos desigual.”
A demanda por mais igualdade racial nos espaços de decisão é histórica e deriva da desigualdade de renda e de acesso ao ensino e às instituições políticas. A implantação de ações afirmativas para ingresso nas universidades, adotada pelo Estado brasileiro há mais de 10 anos, é responsável por importante ampliação dos direitos de grupos sociais excluídos, tornando as universidades mais representativas e plurais.
Essas mudanças progressivas ainda não conseguiram reverter, no entanto, a baixa presença de negros no sistema de justiça. “O recrutamento precisa ser plural, garantindo a diversidade do horizonte social e interpretativo dos juízes”, afirma Custódio. “Com as ações afirmativas, será possível romper com a atual homogeneidade do sistema de justiça.”
De acordo com o Censo do CNJ, o número de negros nos Tribunais Superiores não chega a 10% dos magistrados:
O mesmo cenário já havia sido identificado em Pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), de 2014, do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Segundo o estudo, pardos e pretos correspondem a apenas 22,7% dos juristas e advogados do funcionalismo público.
“O cenário não só demonstra o caráter altamente excludente da Justiça brasileira, mas reafirma a necessidade de discutir a extensão das ações afirmativas para as outras instituições do sistema, como o Ministério Público e a Defensoria”, defende Custódio.
Em setembro de 2014, Conectas participou de audiência pública sobre a adoção de cotas raciais nos concursos do Ministério Público, realizada pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) em Brasília. Na ocasião, em parceria com a JusDh e CEERT (Centro de Estudo das Relações e Trabalho e Desigualdade), apresentou manifestação no Processo Administrativo instaurado pelo CNMP para discutir o tema.
Leia aqui a íntegra da manifestação da Conectas, JUSDH e CEERT.
Apesar de não ter realizado censo entre seus membros, como o CNJ fez com o Judiciário, o CNMP solicitou informações separadas para todos os MPs do País. As informações foram anexadas ao procedimento e mostram que a desigualdade racial também impera no Ministério Público.
O MP do Rio de Janeiro declarou que, entre 910 promotores, apenas quatro são negros. O MP da Bahia conta com nove negros entre 470 promotores. A situação é ainda mais grave no Rio Grande do Sul, onde nenhum dos aproximadamente 700 promotores é negro. O MP do Distrito Federal alegou ter dez negros entre seus 370 promotores. O MP de Minas Gerais afirmou possuir 87 promotores negros num universo de 1003.
“O Ministério Público não reflete hoje, em termos de raça, a diversidade da sociedade brasileira. Uma das razões para isso é a forma de ingresso na carreira, que favorece um mesmo perfil de candidatos. Em geral, são aqueles que não passaram pelas piores condições de exclusão e desigualdade”, aponta Sheila de Carvalho, advogada do programa de Justiça da Conectas.
Em sua fala no Conselho do Ministério Público, a advogada ressaltou a naturalização da ausência da representação da população negra nos espaços de poder:
Assista:
O debate sobre a desigualdade racial nas carreiras também está presente nas Defensorias Públicas. O Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo decidiu recentemente sobre a implementação de políticas de ação afirmativa para ingresso na carreira de defensor, servidor e estagiário da instituição. Em sessão histórica, o Conselho reservou 20% das vagas para negros e indígenas. Conectas, JusDh e CEERT apresentaram parecer apoiando o texto.
“O que estava em jogo era a consolidação de uma Defensoria Pública mais plural e democrática. Uma Defensoria que possibilite repensar e reinventar a representação social nas instituições do sistema de justiça,” ressalta Sheila de Carvalho.
Leia aqui a íntegra do parecer da Conectas, JusDh e CEERT.
Leia aqui artigo publicado pela Conectas, CEERT e Instituto Luiz Gama.
As ações afirmativas são plenamente compatíveis com a Constituição Federal. Os art. 3º, III, art. 23, x e art. 170, VIII obrigam expressamente o Poder Público a estabelecer políticas positivas visando à promoção e integração de segmentos desfavorecidos.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal já decidiu em 26/04/2012, no julgamento da ADPF 186, que as políticas afirmativas são constitucionais, já que buscam efetivar princípios e direitos fundamentais da Constituição brasileira, e que as normas proibitivas,como a Lei 7716/1989, não são suficientes para reduzir a discriminação.
Além disso, a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada há décadas pelo Brasil, estabelece que essas medidas afirmativas são essenciais para assegurar o exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais por grupos étnicos-raciais, tendo o Brasil se comprometido, na assinatura do documento, a empreender todos os esforços possíveis para efetivá-las.
Mais recentemente entrou em vigor o Estatuto da Igualdade Racial, que tem por objetivo a promoção da igualdade e o combate à discriminação. Ele determina que o Poder Público deve realizar ações afirmativas tanto no âmbito educacional quanto no mercado de trabalho.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010, publicados em 2012, mais da metade da população brasileira (50,7%) é negra, além de ser formada, em sua maioria, por mulheres (são quase 4 milhões a mais do que homens).
Na população com 25 anos ou mais, o percentual de pretos com curso superior completo (4,7%) é três vezes menor que o de brancos (15%). Os dados mostram também que os negros são mais de 82,3% entre os mais pobres e somente 16,3% entre os mais ricos.
Em relatório publicado em setembro de 2014, a ONU confirma denúncia histórica dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, no Brasil o racismo é estrutural e institucionalizado.
Estudos apontam que os negros estão sobrerrepresentados nos nichos profissionais menos valorizados (construção civil, comércio ambulante e setor de serviços), ao passo que estão sub-representados em ocupações mais valorizadas pela sociedade (justiça, comércio não-ambulante, profissões liberais, ramo de serviços auxiliares de atividades econômicas).
“Uma sociedade heterogênea e diversificada como a nossa merece um sistema de justiça equivalente, que tenha ferramentas na luta pela redução da desigualdade racial e das manifestações do racismo na sociedade brasileira, inclusive na própria carreira dessas instituições”, declara Rafael Custódio.