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28/06/2021

Direitos LGBTI+: os avanços e as dificuldades na luta por cidadania

Apesar das crescentes conquistas nos últimos anos, a LGBTfobia ainda é uma ameaça aos corpos dissidentes

Foto: Marcello Casal/Agência Brasil
Foto: Marcello Casal/Agência Brasil

Certa manhã, Ágata Mostardeiro se viu transformada em mãe adotiva do próprio filho biológico. A situação kafkiana se deu porque a educadora social é uma pessoa trans. Ao nascer, em 2018, o bebê de Ágata não podia ter duas mães biológicas em seu registro, porque o formulário padrão da Declaração de Nascido Vivo só comporta espaço para um pai e uma mãe. 

Naquele ano, o STF (Supremo Tribunal Federal) havia permitido após o julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 4275, a troca de documentos de pessoas trans direto no cartório, sem a necessidade de apresentar uma ação na Justiça. Ágata, que começou o processo de transição de gênero depois da concepção do bebê com a então companheira, alterou seus papéis para poder ser reconhecida pelo gênero feminino. Mas foi impedida de registrar o bebê como mãe biológica. 

Para poder incluir o recém-nascido no plano de saúde, ela aceitou aparecer como mãe socioafetiva (ou adotiva) na certidão de nascimento. Foi só em 2020, depois de passar por uma série de constrangimentos judiciais — como ter que comprovar a genitália (o que ela não fez, por considerar vexatório) — que a Justiça do Rio Grande do Sul finalmente a reconheceu como mãe biológica do filho que sempre carregou seu DNA. 

Para Symmy Larrat, presidenta da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), a obtenção de direitos via STF cria uma situação atípica em suas aplicações. “Mesmo tendo força de lei, as pessoas têm dificuldade de entendimento daquilo que não é tipificado na legislação. A gente tem dificuldade de aplicar essas conquistas na vida real”, afirma. 

Nos últimos anos, o país registrou avanços importantes na luta por direitos das pessoas LGBTI+. Os principais vieram através do STF, como a já citada possibilidade de alteração de documentos de pessoas trans sem a necessidade da cirurgia de redesignação sexual, em 2018; a criminalização de condutas homofóbicas e transfóbicas, em 2019; a queda da medida que restringia doações de sangue por homens gays e bissexuais, travestis e mulheres trans, em 2020; e o reconhecimento da união estável homoafetiva, em 2011. Além disso, o processo transexualizador no SUS (Sistema Único de Saúde) também passou a ser uma realidade, apesar das dificuldades de acesso. Mesmo assim, dignidade e inclusão plenas ainda parecem um sonho distante. 

“Nos últimos dez anos, vivemos um ciclo de afirmação de direitos, sobretudo advindo de políticas públicas do executivo e do STF. Então do ponto de vista formal, conquistamos os principais direitos da comunidade LGBQIA+”, aponta  Renan Quinalha, pesquisador e professor de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “O problema é que, do ponto de vista material, da prática, da efetividade, ainda há muito caminho pela frente. Isso porque os direitos dependem de uma capilarização para se concretizarem em todo o território nacional.”

Quinalha reforça a necessidade de uma mudança de mentalidade acompanhada de um trabalho de acesso à justiça e consciência do direito a fim de combater essa ambiguidade, que ainda posiciona o Brasil como um dos países mais ameaçadores para pessoas LGBTQIA+ no mundo. Não à toa, em 2020, o Grupo Gay da Bahia registrou a morte violenta de 237 pessoas LGBTI+, sendo que 94,5% destas mortes ocorreram por homicídio e 5,5%, por suicídio. 

Além disso, só no início de 2021, foram registrados pelo menos quatro ataques a parlamentares trans e pretas, compostos por ameaças virtuais, físicas e perseguições. De acordo com o Instituto Marielle Franco, mulheres negras e pessoas trans e travestis se tornam alvo de violência política a partir do momento em que ocupam cargos de poder. Segundo a pesquisa “Violência Política contra Mulheres Negras”, realizada com apoio da Justiça Global e da Terra de Direitos, 98,5% das 142 mulheres negras que assinaram a Agenda Marielle nas eleições de 2020 sofreram agressões, como violências morais, psicológicas, raciais e de gênero. 

“Essas reações são uma resposta desse conservadorismo racista e transfóbico que nunca aceitou mulheres negras, mulheres trans e travestis nesses espaço de poder, mas somente enquanto objetos sexuais e que somente são reconhecidas enquanto corpos e não como sujeitas políticas que pensam e que articulam”, avalia a professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro Jaqueline Gomes de Jesus, presidenta da ABEH (Associação Brasileira de Estudos da Homocultura). “Na cabeça dessas pessoas, as parlamentares são uma ameaça a esse lugar do homem branco cisgênero, supostamente hétero, como único representante da popoulação.”

Para Gomes de Jesus, é importante que os sujeitos que gozam do privilégio da normatividade também se reconheçam enquanto diversos. A ideia de que determinado grupo seja reconhecido como plenamente humano e universal coloca os dissidentes dessa regra em categorias sub-humanas. 

É por isso que Symmy Larrat, da ABGLT, vê a conquista de direitos LGBTI+ como uma vitória de todas as pessoas. “Quando a gente promove a inclusão, estamos construindo e resgatando a nossa humanidade”, acredita. “Precisamos falar sobre o que não é falado para criarmos relações que sejam mais respeitosas e que não excluam ninguém. É assim que a sociedade se torna mais humana.”

 

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