No início de 2013, Wesley Ferreira da Silva, de 27 anos, entrou andando e enxergando no presídio federal Antonio Amaro Alves, em Rio Branco, no Acre. Ali cumpriria seus 21 anos de pena por homicídio, furto e roubo. Agora no hospital, Wesley aguarda imóvel, por conta da paralisia, e no escuro, por conta da cegueira, que sejam encontrados e punidos os agentes carcerários que lhe torturaram na prisão. “Os agentes se acham na autoridade. Falam para a gente procurar os nossos direitos. Mas quando eu vou ter um contato com a Justiça? Quando uma comissão do Ministério Público foi ao presídio, eu já estava parado. Os presos queriam me levar até eles para que soubessem da situação, mas disseram que o promotor estava com muita pressa”, disse ele ao jornalista autor do Blog da Amazônia, do Portal Terra, Altino Machado, que chegou à história antes da Justiça.
Segundo a ONU, a tortura que vitimou Wesley é “sistemática” no Brasil. O País possui a quarta maior população carcerária do mundo, com 548 mil pessoas atrás das grades. Assim mesmo, poucos passos haviam sido dados até agora pelo poder público para prevenir que casos com esse se repetissem. Hoje, 6 anos após ter assumido diante do Subcomitê de Prevenção à Tortura das Nações Unidas o compromisso de criar um mecanismo para coibir essas violações, a Presidência da República sancionou a lei 12.847 que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. A iniciativa foi amplamente apoiada pela Conectas e por outras organizações da sociedade civil, que agora se empenham para garantir a transparência do processo de implantação do Sistema e o comprometimento dos agentes públicos.
Na prática, o Sistema vincula e adequa três órgãos já existentes (o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e o Depen, ambos ligados ao Ministério da Justiça, e o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos), e cria um novo: o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, responsável por fazer visitas a locais de privação de liberdade, solicitar a instauração de inquéritos, fazer perícias, elaborar relatórios, sistematizar dados e sugerir políticas públicas. Conforme o protocolo assinado pelo Brasil na ONU, o órgão seria implantado até 2008.
Os 11 membros do Mecanismo, que serão eleitos pelos 23 membros do Comitê e deverão comprovar formação superior e experiência na área, terão mandato de 3 anos e serão remunerados. A agenda será independente e eles terão acesso livre e irrestrito a todos os locais de inspeção.
“É preciso que o Mecanismo seja criado o mais rápido possível, que seja forte em termos de recursos e estrutura, e que lhe seja garantido livre acesso a qualquer delegacia, carceragem ou centro militar de detenção”, afirma Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas. “Esse órgão será fundamental para jogar luz sobre essa prática medieval.” Para a advogada da Conectas Vivian Calderoni, agora é preciso pressionar o poder público para que a escolha dos membros do Comitê e do Mecanismo, a cargo da Presidência da República, seja totalmente transparente. “É preciso que a sociedade civil participe ativamente desse processo”, diz.
Para Conectas, a criação do Mecanismo Nacional também deve ser acompanhada de um engajamento maior por parte dos estados. “Para que a lei seja eficaz é preciso abrir um canal de diálogo com os governos estaduais. A formação de uma rede de prevenção e combate é fundamental para o sucesso da iniciativa nacional”, diz Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da Conectas. O único estado a colocar um Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura em prática é o Rio de Janeiro. Paraíba, Alagoas, Pernambuco e Espírito Santo já aprovaram leis similares, mas os novos órgãos ainda não estão em funcionamento. Custódio lembra que há mais de um ano um projeto estadual repousa sobre a mesa do governo de São Paulo, que possui a maior população carcerária do País. “A Secretaria de Justiça nos disse que tinha de esperar pela criação do Mecanismo Nacional. Agora não há mais desculpa.”
O que diz a lei?
Conforme a lei 9.455, de 7 de abril de 1997, constitui crime de tortura “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental” afim de obter informações, provocar ações de natureza criminosa, em razão de discriminação racial ou religiosa e, ainda, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. A pena varia de dois a oito anos de reclusão. Se as violações resultarem em morte da vítima, a pena pode chegar a 16 anos.
Há também normas internacionais assinadas pelo Brasil. A principal é a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada em 2002. O País também firmou o Protocolo Facultativo à Convenção em 2007, que estabelecia o prazo de um ano para que os países adotassem mecanismos nacionais de prevenção.
Vídeo
Especialistas ouvidos pela Conectas comentam a sançã da lei 12.847 que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate á Tortura.