Desde 2007, a data de 21 de janeiro é marcada pelo Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que lembra a necessidade de respeitar a liberdade religiosa, princípio fundamental garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal brasileira.
Ataques contra o sagrado afetam, sobretudo, as religiões de matriz africana. Isso porque existe um elemento que estrutura as relações no Brasil: o racismo. Nesse sentido, lideranças religiosas e especialistas no tema acreditam que o termo “intolerância religiosa” não é suficiente para descrever as violências sofridas pelas pessoas que cultuam orixás e outras entidades que não cabem no imaginário ocidental. Em substituição, reivindicam o termo “racismo religioso” para nomear uma prática que ameaça a existência e a liberdade dos povos de terreiro há séculos.
Conectas explica como surgiu o Dia de Combate à Intolerância Religiosa e a relação com o racismo. Acompanhe:
Instituído pela Lei n° 11.635/2007, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa nasceu de uma história de violência. Sem autorização, a foto da Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, foi utilizada em uma reportagem publicada no jornal Folha Universal que criminalizava a atuação de líderes religiosos vinculados ao Candomblé. A relação de sua imagem ao discurso de ódio desencadeou complicações de saúde que levaram à sua morte.
Mãe Gilda de Ogum fundou em 1988 o Ilê Axé Abassá de Ogum, Terreiro de Candomblé localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador. Seu caso foi o primeiro a ser reconhecido como intolerância religiosa com direito a indenização por danos materiais e morais no país.
No Brasil, o direito à liberdade de religião ou crença está previsto no artigo 5º, que determina que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Além disso, constitui crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões, prevendo pena de reclusão de 1 a 3 anos, além de multa.
Vale ainda reforçar que, também definido pela Constituição Federal, o Brasil é um Estado laico (sem religião oficial), não podendo outorgar privilégio a uma determinada religião em detrimento de outra, e assegurando o tratamento igualitário aos seus cidadãos, quaisquer que sejam suas crenças.
É preciso ir além do termo “intolerância” para definir uma violência tão direcionada às religiões de matriz africana no Brasil. O termo racismo religioso traduz com mais precisão a ameaça à liberdade e à existência que os povos de terreiro vêm sofrendo há séculos. Ou seja, o discurso de ódio e os ataques físicos acontecem justamente porque essas religiões são praticadas por pessoas negras. A cartilha “Terreiros em Luta: caminhos para enfrentamento ao racismo religioso”, de Criola, define que “racismo religioso é um conjunto de práticas violentas que expressam a discriminação e o ódio pelas religiões de matriz africana e seus adeptos, assim como pelos territórios sagrados, tradições e culturas afro-brasileiras.”
“A expressão ‘racismo religioso’ nasce no sistema das Nações Unidas nos anos 1960, e ela vem adquirindo conteúdo jurídico e significação volátil ao longo das décadas”, explicou o advogado Hédio Silva, coordenador executivo do Instituto de Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), em evento sobre o tema organizado por Criola, Conectas e o Portal Catarinas. “Eu entendi que ‘intolerância religiosa’ é insuficiente quando percebi que a religiosidade é só um alvo desses ataques, talvez o mais visível, mas, na verdade, os ataques se dirigem a todo patrimônio cultural e a todo legado civilizatório herdado do tráfico transatlântico”, complementou.
Dados do portal Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apontam um aumento no número de casos. Segundo o II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, organizado pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e pelo Observatório das Liberdades Religiosas, com apoio da Representação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco) no Brasil (2023), foram registrados 477 casos de intolerância religiosa em 2019, 353 casos em 2020 e 966 casos em 2021.
Em levantamento feito pela Agência Brasil, no primeiro trimestre de 2023 a polícia civil de São Paulo registrou 181 casos de intolerância religiosa em todo o estado, o que representou 87,4% das ocorrências reportadas entre janeiro de 2019 e março de 2023 – mais uma demonstração dessa alta significativa ao longo dos anos.
“Acreditamos ser um dever coletivo a criação de ambientes seguros, onde todas as pessoas possam praticar sua fé, sem nenhum tipo de discriminação ou perseguição. Para isso, também é importante responsabilizar as pessoas e instituições que propagam o ódio e a intolerância e cobrar do estado políticas públicas concretas de enfrentamento ao racismo religioso”, afirma Maryuri Grisales, assessora do programa de Fortalecimento do Espaço Democrático da Conectas.
Ela ressalta que casos como o da Mãe Gilda não ficaram no passado. “Há ainda muitas situações em que pessoas adeptas de religiões de matriz africana são atacadas ou discriminadas em transporte público, escolas ou locais de trabalho”, diz. Recentemente, uma estudante de direito de Salvador foi atacada em um vagão de metrô por um homem que se incomodou por deixar visível os seus fios de conta. Vale lembrar ainda que em 2023 foi sancionada a lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo. A nova lei proíbe o uso de violência contra manifestações ou práticas religiosas. Outro caso de repercussão nacional foi o assassinato de Mãe Bernadete. Ela foi morta no Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, região metropolitana de Salvador. O crime intersecciona várias motivações políticas e religiosas, todas atreladas ao racismo.
Todas as vítimas de racismo religioso ou intolerância religiosa podem fazer denúncias pelo Disque 100, canal de denúncias contra os direitos humanos do Governo Federal. É também recomendável procurar canais como a Ouvidoria de Direitos Humanos de cada estado, a Delegacia de Racismo e Crimes de Intolerância (presente em alguns estados), além da Defensoria Pública e o Ministério Público.