Voltar
-
29/09/2021

Mil dias do governo Bolsonaro: dez vezes que a sociedade civil barrou retrocessos

Na semana em que o governo Bolsonaro completa mil dias, relembre as investidas fracassadas do governo de atacar a democracia e retirar direitos garantidos

Para garantir a manutenção de direitos e da democracia, sociedade civil atua fortemente contra medidas inconstitucionais de Jair Bolsonaro. Foto: Ebc Para garantir a manutenção de direitos e da democracia, sociedade civil atua fortemente contra medidas inconstitucionais de Jair Bolsonaro. Foto: Ebc

O governo Jair Bolsonaro completa mil dias nesta semana tendo como uma de suas principais marcas o ataque sistemático aos direitos humanos e à democracia. De diferentes formas — medidas provisórias, decretos, projetos de lei, portarias ou licitações — a administração Bolsonaro, desde 2019, tenta controlar defensores de direitos humanos e opositores, ampliar indiscriminadamente o acesso a armas de fogo, negligenciar cuidados sanitários a povos indígenas e quilombolas e outras ações que atacam os princípios constitucionais.

As tentativas em retroceder exigiram, portanto, uma atuação forte da sociedade civil no Congresso, no Judiciário e nos organismos internacionais. 

A Conectas relembra 10 casos nos quais a sociedade venceu Bolsonaro: 

 

1 – Excludente de ilicitude no pacote “anticrime”

Em fevereiro de 2019, o ex-juiz federal Sérgio Moro, então ministro da Justiça, encaminhou ao Congresso o chamado pacote “anticrime”, um conjunto de medidas que, de forma geral, insistia na visão punitivista e de inchaço do sistema prisional, propondo endurecimento de penas e a redução de direitos como da progressão de penas. Entre os pontos mais problemáticos do pacote, estava a ampliação das hipóteses de “excludente de ilicitude”, isentando policiais de responder por eventuais crimes dolosos cometidos em caso de abuso no exercício da função — algo que, na prática, dá carta branca a policiais para matar, justamente no país com uma das maiores taxas de letalidade policial contra jovens negros, majoritariamente pobres, e periféricos.

Composta por mais de 70 organizações, incluindo a Conectas, a campanha “Pacote Anticrime, uma solução Fake”, chamou a atenção do Congresso Nacional para os problemas do projeto, incluindo a excludente de ilicitude. Como resultado desta pressão, a excludente de ilicitude e outros pontos considerados inconstitucionais foram retirados do texto aprovado pelo Congresso. Relembre o caso neste link.   

2 – MP de controle de ONGs

Logo no início do governo, a Medida Provisória 870/2019, que reorganizava a estrutura da administração pública federal, incluía um artigo que dava à Secretaria de Governo a prerrogativa de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. Na prática, a MP criava formas de o Planalto vigiar organizações da sociedade civil, tidas como inimigas de Bolsonaro ainda durante sua campanha eleitoral e, consequentemente, limitaria o trabalho das ONGs no campo dos direitos humanos e socioambientais, por exemplo. A MP também tentava alterar o processo de demarcação de terras indígenas, transferido da Funai (Fundação Nacional do Índio), no Ministério da Justiça, para o para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), no Ministério da Agricultura. 

Em resposta, centenas de organizações não governamentais pressionaram o Congresso Nacional e integrantes do governo, apontando que tentar controlar o trabalho da sociedade civil seria inconstitucional. Em nota, o Pacto Pela Democracia afirmou que já existe o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, regulamentando a atividade do terceiro setor. No Congresso, integrantes da sociedade civil acompanharam com atenção uma comissão mista criada para analisar a MP. Após muita discussão e pressão, uma importante vitória: os parlamentares tiraram da Secretaria de Governo o poder de monitorar a atividade de organizações não governamentais. A demarcação de terras indígenas também seguiu na Funai. Retome o caso neste link

3 – Enfraquecimento do combate à tortura

Em decreto publicado no mês de agosto de 2019, Bolsonaro exonerou onze peritos do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura). Ligado ao Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, o órgão é responsável por fiscalizar torturas e maus-tratos em prisões, casas de idosos e hospitais psiquiátricos. 

Além da exoneração dos cargos, o decreto determinou também que a atuação no órgão passasse a ser considerada “prestação de serviço público relevante, não remunerada”. Na prática, o governo esvaziava o principal mecanismo inspeção de presídios no país. 

O decreto provocou reações da sociedade civil brasileira e de órgãos internacionais. Ao tomar conhecimento sobre o tema, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) manifestou preocupação com a medida. Uma nota assinada por mais de 200 organizações, incluindo Conectas, OAB e IDDD, repudiou a extinção da autonomia do mecanismo.

Diante da situação, a DPU (Defensoria Pública da União) entrou com uma ação pedindo a suspensão do decreto presencial. O pedido foi parcialmente aceito pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, que reintegrou os peritos exonerados por meio de liminar.  Clique aqui para relembrar o caso. 

4 – Deportações sumárias

Em julho de 2019, em uma canetada, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro passou a permitir a deportação sumária de migrantes com base na mera suspeita de que a pessoa fosse perigosa para a segurança do país por suposto envolvimento em terrorismo, organização criminosa ou tráfico de drogas, entre outros.

Contrária a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e à Lei de Migração, que garante o direito à defesa, a portaria MJ 666/19 concedia poderes à Polícia Federal para decisões e medidas arbitrárias, como um prazo de apenas 48 horas para que uma pessoa notificada apresentasse sua defesa ou deixasse voluntariamente o país. 

Mais de 50 entidades da sociedade civil ligadas à questão migratória se manifestaram contra a portaria. Em nota, disseram que “não há previsão no ordenamento jurídico brasileiro, em especial na Lei de Migração, para medida de retirada compulsória de imigrante que já se encontrasse em território nacional nos moldes apresentados pela Portaria.”

Após uma ação no Supremo Tribunal Federal movida pela PGR (Procuradoria-Geral da República), em setembro de 2019, a pedido da sociedade civil, a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 619, o governo revogou a medida, editando nova portaria atenuando a gravidade do ato anterior. A pressão fez também com que, na prática, as medidas de deportação sumária não fossem executadas pela Polícia Federal. Veja mais neste link. 

5 – Decretos de armas

Desde que assumiu a Presidência da República, em janeiro de 2019, Bolsonaro editou uma série de decretos para alterar aspectos do Estatuto do Desarmamento – uma lei sancionada em 2003 e que conseguiu frear o crescimento no número de homicídios provocados por armas de fogo no país.

As medidas do governo federal reduziram controles, requisitos e limites para o porte e a posse de armas e munições, visando gerar incertezas e caos normativo, em favorecimento à pauta armamentista. Em maio de 2019, a ADPF 581 chegou ao STF para questionar a constitucionalidade de um desses decretos, o 9.785/2019. 

Admitida como amicus curiae, a Conectas ressaltou a relação entre a difusão de armas de fogo e o aumento dos homicídios, feminicídios, suicídios e acidentes fatais envolvendo crianças. Nesse sentido, a organização destacou que os decretos incidem sobre as garantias fundamentais que inspiraram o Estatuto do Desarmamento – o direito à vida, à segurança pública e à dignidade da pessoa humana – e deixam a juventude negra especialmente exposta ao aumento da violência.

Em abril de 2021, a ministra relatora Rosa Weber, por meio de liminar, suspendeu diversos dispositivos de quatro decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro. O caso foi levado ao plenário da Corte, juntamente com as demais ações que questionam outros decretos, e aguarda retorno de um pedido de vista do ministro Kássio Nunes Marques. Enquanto isso, a suspensão determinada por Rosa Weber segue vigente. Acompanhe a ação neste link.

6 – Proteção dos indígenas na pandemia

Pressionados por garimpeiros ilegais e sem acesso rápido à assistência médica, comunidades indígenas foram abandonadas à própria sorte pelo governo federal durante a pandemia de Covid-19.

Em julho de 2020, diante da incapacidade do governo em cumprir a responsabilidade constitucional de proteger a sobrevivência física e cultural dos indígenas, a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e seis partidos políticos apresentaram uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 709) ao STF denunciando a omissão e as falhas da União e demandando a elaboração de um plano emergencial para o controle da pandemia nas terras indígenas. O pedido liminar foi parcialmente deferido pelo relator, o ministro Luís Roberto Barroso, que obrigou o governo federal a apresentar uma série de medidas concretas para enfrentar a situação. 

Para a Conectas e o ISA (Instituto Socioambiental), que ingressaram no caso como amicus curiae, a decisão liminar foi positiva, mas deixou de fora um elemento central para a proteção dos povos indígenas: a expulsão de invasores, os principais transmissores do vírus e responsáveis também por muitos conflitos e violência contra comunidades indígenas, principalmente Yanomami e Munduruku. 

De acordo com estudo elaborado pelo ISA que demonstra os riscos concretos de contaminação associados às invasões, sete terras indígenas que, juntas, sofreram 85% do desmatamento total registrado pelo país em 2019, estão mais vulneráveis neste momento:  Terras Indígenas Yanomami (RR/AM), Karipuna (RO), Trincheira Bacajá (PA), Kayapó (PA), Munduruku (PA), Araribóia (MA) e Uru-Eu-Wau-Wau (RO). Recorde mais pontos do caso neste link.

7 – Mudanças na Lei de Acesso à Informação

Os mecanismos de acesso à informações públicas também foram alvo do governo Bolsonaro. Em março de 2020, por meio da Medida Provisória 928, que apresentava medidas para o enfrentamento da pandemia de covid-19, incluía um artigo que, na prática, suspendia o atendimento a pedidos de acesso à informação, interferindo, assim, no pleno funcionamento da LAI (Lei de Acesso à Informação), em vigor desde 2012. 

A Conectas e outras dezenas de organizações classificaram a MP como desproporcional e violadora do direito constitucional de acesso a informações de interesse coletivo. Ainda para as entidades, a medida colocava a transparência e o controle social em um lugar secundário, justamente quando a população sofria com a desinformação em meio a uma crise sem precedentes. 

Em abril de 2020, partidos políticos e OAB pediram ao Supremo Tribunal Federal a derrubada da MP. Os peticionários foram atendidos pelos ministros do Supremo que consideraram, por unanimidade, o caráter inconstitucional da medida violadora da LAI.  O Congresso, por sua vez, não analisou a MP dentro do prazo de 120 dias, como determina a legislação, e, com isso, o texto tornou-se sem validade. Relembre a mobilização da sociedade civil contra as mudanças na LAI. 

8 – Derrubada da Lei de Segurança Nacional

Promulgada pela ditadura militar em 1983, a LSN (Lei de Segurança Nacional) foi revogada pelo Congresso Nacional em agosto de 2021. Em seu lugar, os parlamentares acrescentaram ao Código Penal crimes contra o Estado Democrático de Direito.

A tramitação do projeto de lei de Defesa do Estado Democrático se deu neste ano após críticas de especialistas e membros da sociedade civil, que apontavam o uso indiscriminado da lei de raiz autoritária para perseguir críticos do governo federal. De acordo com levantamento da LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo, nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro houve um aumento de 285% na abertura de inquéritos com base na LSN em comparação com o mesmo período do governo Dilma Rousseff e Michel Temer.

No início de setembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos a nova lei  do Estado Democrático de Direito, que tramitou no parlamento brasileiro  com apoio de uma ampla frente de partidos, de diferentes espectros políticos, e que entenderam a necessidade de superar a LSN. As mudanças ao texto apresentadas pelo Planalto, no entanto, tentam blindar agentes de segurança que reprimem manifestações pacíficas. Cabe agora ao Congresso decidir se aceita ou não os vetos presidenciais. Recorde a derrubada da LSN neste link. 

9 – MP das Fake News

Às vésperas das mobilizações anti-democráticas promovidas por simpatizantes do governo Jair Bolsonaro em sete de setembro deste ano, o Planalto editou uma medida provisória (MP 1068/21) que alterava o poder das redes sociais de moderar conteúdos e remover perfis que violassem seus termos de serviços e, na prática, facilitava a disseminação de conteúdos falsos e de ódio na internet. 

Sob alegação de que a MP garantia a liberdade de expressão, o governo pretendia modificar o Marco Civil da Internet e a Lei de Direitos Autorais, mecanismos discutidos amplamente entre Congresso Nacional e sociedade civil. 

Em resposta, seis partidos políticos entraram com ações no STF (Supremo Tribunal Federal) pedindo a suspensão imediata do efeito da MP. Ao mesmo tempo, organizações não governamentais iniciaram uma forte campanha pedindo que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, devolvesse a medida provisória ao governo, o que anularia o texto. As duas medidas foram vitoriosas. Pacheco, no Senado, atendeu ao pedido de organizações sociais que trabalham em defesa dos direitos digitais, e a ministra Rosa Weber, do STF, por sua vez, também tornou a MP ineficaz, como pediu o grupo de parlamentares. Recorde neste link os problemas da MP das Fakes News. 

10 – Vigilantismo digital 

Reportagem do portal UOL apontou que o governo federal  estava interessado em comprar o software espião Pegasus, utilizado em diferentes países do mundo por governos autoritários para vigiar jornalistas, defensores de direitos humanos e opositores políticos. Para isso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública lançou uma licitação, sem a participação do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), órgãos responsáveis por este tema.   

Entidades da sociedade civil lançaram uma campanha para que TCU e Justiça Federal barrassem a contratação de espionagem ilegal. Conectas, Instituto Igarapé, Instituto Sou da Paz, Rede Liberdade e Transparência Internacional Brasil protocolaram, em maio deste ano, no TCU (Tribunal de Contas da União), uma denúncia apontando irregularidades no pregão e requerendo sua suspensão. 

“Estamos diante de contratação ilegal, por via inadequada, de sistema potencialmente lesivo à coletividade, que permitirá coleta indiscriminada e indevida de informações, inclusive podendo servir a interesses políticos escusos”, alertou as entidades. 

Após a repercussão do caso, a NSO Group, empresa israelente responsável pelo Pegasus,  abandonou a licitação e, como o pregão não foi suspenso, outra empresa venceu, a Harpia Tecnologia Eireli. Em outra ação, quatro organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, pedem para que o TCU impeça o Ministério da Justiça e Segurança Pública de contratar o sistema de espionagem Harpia, alegando que o processo licitatório ocorreu sem transparência. Veja mais sobre o caso neste link. 

Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas