Há exatamente um ano, a proeminente ativista hondurenha Berta Cáceres era assassinada enquanto dormia em sua casa, na cidade de La Esperanza, a trezentos quilômetros da capital Tegucigalpa. Naquela madrugada, seu nome foi somado à lista de 120 ativistas mortos desde 2010 no país – o mais perigoso lugar do planeta para defensores e defensoras de direitos humanos, de acordo com a ONG Global Witness.
Berta era conhecida internacionalmente por ser uma das fundadoras do COPINH (Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras) e por sua dedicação implacável à luta contra a construção da hidrelétrica de Agua Zarca em território lenca – a maior etnia de Honduras, da qual ela mesma fazia parte.
Iniciada em 2011, a obra não passou pela consulta livre prévia e informada das comunidades afetadas como determina a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual Honduras é signatária, e pode afetar de maneira irreversível a vida dos povos indígenas que vivem na região
Por conta de seu ativismo, Berta vivia sob ameaças constantes e contava com uma medida cautelar expedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
De passagem pelo Brasil, o advogado hondurenho e coordenador geral do Movimento Amplo pela Dignidade e a Justiça, Martín Fernandez Guzmán, explicou em entrevista à Conectas como é trabalhar nesse contexto de violência e perseguição permanentes contra defensores de direitos humanos. Sua organização, fundada em 2008, atua como braço legal e técnico do COPINH.
Guzmán, que também conta com medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, analisou ainda o contexto e as contradições que permeiam as investigações sobre o assassinato de Berta e as semelhanças entre as realidades de Brasil e Honduras no que tange à violência no campo.
Conectas | Um ano depois do assassinato de Berta Cáceres, Honduras ainda é país mais perigoso do mundo para defensores e defensoras de direitos humanos. Como é trabalhar nessa realidade?
Martín Fernandez Guzmán | É como se você se habituasse ao ambiente de crime permanente. A situação para defensores de direitos humanos e ativistas ambientais é uma coisa muito forte, mas na verdade é bem forte para a sociedade em geral – só há um grau de perseguição maior contra quem faz esse tipo de trabalho que nós fazemos – e acredito que obedece a um projeto de quem governa. Entendemos que todo esse processo que existe contra defensores de direitos humanos e ativistas ambientais é um projeto de governo e é um projeto imperial. É muito complicado porque, se o Estado não garante a vida da sociedade em geral, muito menos terá a delicadeza de cuidar daqueles que fazem esse tipo de trabalho. Ao contrário: há um grau de perseguição que é realmente grave. Esse processo de criminalização, de perseguição, está demarcado pelo processo de negociação dos nossos territórios, que vincula tanto o setor político quanto o setor empresarial, as transnacionais. O reflexo fiel é o caso da morte de Berta – e por trás dessa morte, há um monte de outras mais. A questão crítica em torno desse caso é que quase todos em Honduras e muita gente no mundo sabe quem são os autores – e não necessariamente as pessoas investigadas no processo, mas as pessoas que idealizaram completamente o assassinato, e que inclusive fazem negócios com o Estado. São pessoas dos bancos que pedem empréstimos, usufruem do próprio Estado e aparecem como defensoras do meio ambiente. É uma enorme contradição.
Qual é a relação entre Movimento Amplo e o COPINH (Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras)? Vocês estão acompanhando de perto o caso da Berta?
Para nós não existe a palavra “acompanhar”. A gente vive tudo o que acontece. Onde há um povo que luta, ali estamos como organização. E efetivamente nós temos uma proximidade muito grande com o COPINH, quase desde quando a gente nasceu como organização, em 2008. Entramos numa aliança política com o COPINH. Além disso, o Movimento Amplo é como o braço legal do COPINH e o braço técnico em grande parte do trabalho. Inclusive no processo de criminalização da Berta, e da perseguição que sofreu, foi nossa organização que fez toda a defesa até conseguir a sua liberdade. E depois seguimos fazendo o trabalho de denúncia porque, um ano antes da morte de Berta, foram apresentadas trinta denúncias por ameaças diretas que ela sofria. Além disso, apresentamos a impugnação de 49 projetos que seriam desenvolvidos em território lenca – que é o território de povos originários onde ela fazia o seu trabalho. Cada vez mais reafirmamos nosso trabalho de articulação com o COPINH, mas também com outras organizações do movimento social e, à parte disso, com comunidades que não necessariamente estão vinculadas com uma organização, mas que têm uma luta em defesa de seu território ou um conflito herdado das estruturas de poder no país. Nós abraçamos todas as lutas justas que acontecem nos territórios. Fomos partícipes em casos de liberação de territórios onde jogamos um pouco com a lógica das leis, porque temos uma equipe de advogados e técnicos que nos permite, com todo o estamento legal que existe, fazer esse exercício – e tivemos resultados importantes em territórios que estavam dominados por quiçá quinhentos anos. Iniciamos um processo com o povo originário mais massacrado na história de Honduras, que é o Tolupane, em que se havia chegado a níveis quase similares aos da escravidão ou do feudalismo. Uma pessoa tinha o controle e açoitava os líderes que se opunham. Nós revertemos toda essa situação através de denúncias, processos judiciais, e hoje esse povo tolupane, que teve mais de 120 líderes assassinados desde 1992, tem o controle de seu território. Portanto, de pouco em pouco fazemos um trabalho que às vezes não é tão visibilizado, mas que tem sim resultados.
O que está sendo feito para proteger a vida e a integridade física dos defensores e defensoras de direitos humanos em Honduras?
Nós dizemos que o que existe é um desafio individual e coletivo porque, se bem é certo que eu particularmente possuo medidas cautelares da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assim como outros líderes, na realidade não existe segurança. Os representantes do Estado que deveriam estar muito atentos para alcançar acordos e estabelecer mecanismos necessários para salvaguardar a vida dos defensores quase sempre estão ausentes. E a prova disso é que Honduras tem uma quantidade importante de pessoas com medidas cautelares dessa Comissão da OEA, mas foram registradas entre 15 e 17 mortes nesse grupo – como é o caso da Berta. Nossa luta é permanente, desafiando permanentemente a morte.
E como o judiciário têm se portado diante desses casos de violência?
O comportamento do judiciário é péssimo. Vamos recuperar um pouco da história do caso: tratou-se de vincular a morte de Berta Cárceres a um crime passional, muito mal feito. Além disso, tentou-se vinculá-la a um conflito interno da organização. Tudo isso foi sendo desarticulado porque, por sorte, Gustavo Castro [outro ativista que estava com Berta no momento do ataque] ficou vivo e conseguiu esclarecer um pouco esse panorama. Depois o caso foi decretado secreto pela Justiça, contrariando toda a norma legal. Isso foi levado à Comissão Interamericana e ela pôde, como dizemos em bom hondurenho, “desnudar” as estruturas de governo, como a procuradoria, que em realidade não poderia ter decretado segredo para os familiares e para a equipe legal que maneja o caso. No entanto, contrariando tudo, o processo segue em segredo, num ato que revitimiza os familiares. Acreditamos que há uma conduta sustentada para que esse caso fique impune. Porque hoje estão sendo processadas sete pessoas, mas a família e as organizações têm a clareza de que não basta condenar os que dispararam as armas, e de que houve um plano muito bem estruturado de um setor da empresa [responsável pela hidrelétrica] para executar essa morte. E enquanto não se toque essa estrutura, não haverá Justiça para Berta. O Estado, através de sua institucionalidade, é cúmplice de todo esse processo. E se evidencia cada vez mais que não existe vontade, porque é só sair um informe como o da Global Witness [sobre o caso de Berta], e na semana seguinte se apresenta um processo contra outra pessoa, mas não contra os altos executivos da empresa. O que sempre se busca é tapar, tapar, e mandar a mensagem de que as coisas estão sendo feitas.
Depois da morte de Berta, um escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos foi instalado em Honduras. Como você enxerga o papel dos organismos internacionais em relação ao que acontece no país?
Se questiona muito a debilidade da institucionalidade hondurenha, mas esse questionamento tem seu limite porque está evidenciado que, quando é um setor econômico o que está sendo afetado, a institucionalidade funciona perfeitamente. De um dia para o outro se apresentam ações legais contra as pessoas que reclamam ou saem para protestar contra um projeto considerado ilegal. Então, sim, funciona perfeitamente, mas só para uma classe, ou para a classe privilegiada, mas não funciona para a maioria da população hondurenha. Então todo esse processo de intervenção – porque para a gente esse é um processo de intervenção – ao final tem um custo bem alto porque passa a mensagem de que a institucionalidade fracassou em Honduras. A presença desses organizamos, entendemos, vende uma imagem positiva de Honduras e legitima tudo o que acontece no país. Substancialmente, não se produziu mudanças. Até agora, foi apenas um verniz, uma maquiagem. Em 2016 houve uma mobilização muito forte na qual pedíamos a presença de uma Cici [Comissão Internacional contra a Impunidade], por conta da questão de corrupção, como aconteceu na Guatemala, uma comissão que viesse das Nações Unidas. Em Honduras, nos deram uma estrutura da OEA, deixando à margem tudo aquilo que a população hondurenha queria. Porque a OEA, para a gente, se colocou à prova durante o golpe de Estado de 2009 [contra o presidente Manuel Zelaya]. Já está suficientemente provado que essa institucionalidade não funciona. Hoje afirmamos que vamos outorgar a possibilidade de que [esses organismos] estejam, de que tenham presença, mas seremos vigilantes ativos de todo o processo e, no que seja possível, vamos contribuir com as informações que temos – e assim estamos fazendo. Entregamos à Comissão de Apoio contra a Corrupção e a Impunidade, que é a MACCIH, dependente da OEA, toda a informação de que dispomos. Mas já se passou um ano e não vimos maiores resultados. Até agora, há uma dívida da institucionalidade do mundo em relação a Honduras. Não existe a coercitividade e a vontade de quem governa não vai estar aberta. Se realmente queremos processos francos de Justiça, esses organismos [internacionais] devem ser mais coerentes e devem ser muito mais fortes diante de uma institucionalidade [nacional] que está exposta de maneira clara, que tem uma debilidade para fazer Justiça.
Qual é status da hidrelétrica de Agua Zarca, um dos principais projetos por trás da morte de Berta?
Segue igual. A família da Berta exigiu o ajuizamento dos que cometeram o crime, dos que o pensaram e, além disso, a retirada de todos os processos [de construção e licenciamento], mas eles ainda estão vigentes. Não se paralisou nada. Ao contrário, estão buscando legitimar esse tipo de projeto. É uma contradição absoluta. Neste caso do assassinato da Berta, estão respondendo dois ex-vice-ministros que outorgaram licenças sem consulta prévia. No entanto, isso não foi capaz de desbaratar o processo legal [de construção da obra]. E segue o processo de campanha para criminalizar e fazer desaparecer o COPINH, porque isso também era parte da lógica da empresa.
Se proporcionalmente Honduras lidera o ranking de violência contra defensores e defensoras, o Brasil ocupa o primeiro lugar em números absolutos de assassinatos. O que há de similar entre as realidades desses dois países?
Geopoliticamente e estrategicamente, somos países muito importantes para o grande capital. Em termos de riqueza natural, também somos países como muitas fortalezas – e ter tanta riqueza às vezes se converte em um mal. Acredito que os olhos do mundo – sobretudo do mundo do capital – estarão sempre sobre nossos territórios.
Como a sociedade civil de outros países pode contribuir com o trabalho das organizações hondurenhas?
Na medida em que haja difusão do trabalho que se faz, do reconhecimento das organizações. O mais importante é que possamos fazer um trabalho que seja sólido, que ao final o fruto seja de uma cidadania que está ativa, capaz de defender seus territórios, capaz de defender suas soberanias. E creio que essa é a maneira de ratificar o trabalho que se faz. De fora, seremos qualificados como inimigos por parte daqueles que governam. Porque a ideia que se tem é que quando uma pessoa sai do país, só sai para denunciar e dizer coisas perversas, e que isso definitivamente não contribui porque o investimento se vai. Queria reforçar que Honduras está atravessando uma situação crítica em matéria de direitos humanos, em matéria ambiental. O governo pode estabelecer qualquer mecanismo que criminalize o protesto, mas o protesto não vai parar porque as pessoas estão convencidas de que, sem água, não poderão viver. A cada dia, estamos desafiados a ser criminalizados, a ser assassinados. Mas se não fazemos hoje a luta por aquilo que nos dá a vida – a água –, não faremos isso nunca. Estamos a um ano do falecimento da Berta. Queria fazer um chamado para que a população se manifeste. Há uma agenda estabelecida, um dia para colocar uma vela em sinal de solidariedade e exigindo Justiça. Uma imagem, uma mensagem para os hondurenhos é vital e reconforta para seguir na luta. Sempre seguiremos com o nosso trabalho, mas, na medida em que se somem vozes e espíritos, a luta se recrudesce. E é possível que, mudando a história de Honduras, isso possa ser um exemplo para mudar a história do Brasil. Sei que é bastante assimétrico comparar Honduras e Brasil, mas os processos se assemelham. Um exemplo de um território pode ser importante para o outro.