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11/05/2023

Débora Maria da Silva: uma trajetória feita de luto e luta que uniu mães de todo Brasil

Ativista explica como o assassinato do filho a levou a criar o Movimento Mães de Maio e exigir responsabilizações e reparações na Justiça brasileira e internacional

Dona Débora, leader of the Mothers of May Movement, in an interview with Conectas
on the Crimes of May. (Photo: João Paulo Brito/Conectas) Dona Débora, leader of the Mothers of May Movement, in an interview with Conectas on the Crimes of May. (Photo: João Paulo Brito/Conectas)

No mês em que os Crimes de Maio completam 17 anos, a Conectas publica o perfil de Débora Maria da Silva, cofundadora do Movimento Mães de Maio, que cobra responsabilização pelas violações de direitos humanos ocorridas em um dos episódios mais sangrentos da história. O texto faz parte da publicação ‘Conectas 20’, que reúne as trajetórias de personagens centrais na história da Conectas. 

Na quinta-feira (18), o Movimento Independente Mães de Maio realiza a audiência pública: “Ouçam as mães: Vozes da dor e da luta contra a violência de Estado”, das 10h às 13h, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP. 

Leia o perfil de Débora Maria da Silva: 

Em março de 2005, em São Paulo, um ex-policial civil sequestrou o enteado do homem apontado como líder do PCC, o Primeiro Comando da Capital, na tentativa de extorquir o narcotraficante. O crime, somado a outras disputas entre Estado e tráfico, produziu um trágico efeito dominó que marcaria para sempre a história brasileira.

Pouco mais de um ano depois, a partir do dia 12 de maio de 2006, teve início uma matança que em duas semanas alcançaria um saldo de 59 agentes do Estado e mais de 500 civis assassinados. Os chamados Crimes de Maio conseguiram ultrapassar em poucas semanas o número oficial de mortos pelos Estado nos 21 anos de ditadura militar no Brasil.

Naquele momento, ficou exposta uma longeva relação entre poder público e organizações criminosas: uma rede formada por policiais, escrivães, delegados e grupos de extermínio compôs a trilha de sangue na qual centenas de civis foram assassinados, entre eles o gari Edson Rogério Silva dos Santos, então com 29 anos. 

Edson Rogério era filho de Débora Maria da Silva, 62, fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, criado a partir do luto das mães que perderam seus filhos assassinados durante aquele terrível mês de 2006. Foi ao ouvir um programa de rádio que Débora descobriu que seu filho havia sido morto, quando o locutor citou os nomes das vítimas e comentou: “Mataram um monte de neguinho”. 

Os homicídios ocorridos neste período vitimaram uma maioria de jovens negros das periferias de São Paulo e da Baixada Santista, onde Débora criou os três filhos, entre Santos e São Vicente.

Em comum, a maioria das mortes guardava características de execução sumária em circunstâncias típicas da ação de esquadrões da morte — grupos de policiais que surgiram no Brasil durante a ditadura para vingar a morte de colegas e que passaram a executar quem quer que fosse considerado suspeito ou inconveniente. 

E há quem enxergue nesse enredo a explicação para a morosidade e as negligências que marcaram as investigações desses assassinatos. “As investigações aqui não iam pra frente”, conta Dona Débora, como passou a ser conhecida. “A gente apontava as evidências, e eles não davam a mínima. A gente ia ao Ministério Público, pior ainda. Era uma dança dos carimbos, e nada acontecia.”

Talvez também ajude a explicar o fato de 79 promotores de Justiça do Ministério Público Estadual de São Paulo terem manifestado seu apoio à “eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pública violada”, em ofício divulgado uma semana após os ataques. Anos depois, apenas dois dos promotores se declararam arrependidos.

Débora afirma que não foram sequer resgatadas as imagens das câmeras de segurança ao redor do posto de gasolina onde Rogério foi visto pela última vez e onde teria sido abordado por policiais ao abastecer a moto, saindo da casa da mãe. 

“Quando foram buscar as imagens, elas já tinham sido apagadas. A gente pensava que ia conseguir alguma coisa, uma Justiça, mas foi um descaso muito grande e aquilo foi me deprimindo muito, muito, muito. Caí de cama e fui parar no hospital.”

A caminhada do luto à luta ganhou sentido ali, no quinto dia de internação hospitalar. Débora atribui a transformação de dor em movimento a um encontro sobrenatural. 

“Eu tive uma visão. Ainda estava muito fraca para me levantar da cama, e meu filho apareceu pra mim”, diz. “Foi uma coisa muito estranha. Ele me puxou da cama com raiva, com a maior cara feia. Me sentou e falou: ‘Não quero a senhora aqui. Eu não volto mais, não adianta ficar assim. Vai pra luta’.”

Débora conta que ficou com medo, mas tentou se convencer de que aquilo era alucinação por causa dos remédios. “No dia seguinte, no banho, senti o braço dolorido e vi que ele tinha marcas roxas. Do outro lado, a mesma coisa. Aquilo me deu um choque muito grande.”

Dois dias depois, ao receber alta, Débora começou a ir atrás das mães de outras vítimas que tinha visto na TV ou sobre as quais tinha lido em jornais. Primeiro bateu na casa de Ednalva Santos, mãe do Marcos Rebello Filho, morto no Dia das Mães. Juntas, foram atrás de Vera Freitas, mãe de Matheus de Andrade Freitas, cujo pai era um conhecido líder comunitário. 

“Entramos pra dentro da favela, ninguém queria falar nada, mas acabamos achando a Vera, que contou toda a história e disse que conhecia a mãe da menina grávida de nove meses que foi assassinada, a Ana Paula Santos”, conta. “E, no dia seguinte, nós fomos atrás da mãe dela, a Vera Gonzaga, que ficou desconfiada e disse pra gente: ‘Vocês conhecem a história das mães de Acari? Nós vamos morrer assassinadas’.”

Vera Gonzaga se referia ao movimento de mães surgido no Rio em 1990 depois que 11 jovens desapareceram após uma abordagem policial em Magé, na Baixada Fluminense. Elas se mobilizaram para investigar os casos e exigir a responsabilização dos policiais. Uma de suas lideranças foi assassinada em 1993 em circunstâncias nunca explicadas.

Débora conseguiu contornar seus próprios medos e os das outras mães e formar um grupo. Descobriu que existiam, na capital paulista, um centro de atendimento a vítimas de violência, uma Ouvidoria da Polícia e um Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). E organizou um bate-e-volta das mães da Baixada a São Paulo. “Eu nunca tinha ido pra São Paulo. Não conhecia São Paulo. Mas juntei as mães e falei: ‘Vamos, vamos, vamos!’.”

Nascida em uma família de evangélicos que migraram de Pernambuco a São Vicente quando ela tinha apenas 3 anos, Débora foi criada de saia e cabelos longos, com muito medo de tudo, inclusive da cidade de São Paulo. O pai, religioso e conservador, excomungou-a quando ela cortou os cabelos. Depois, bateu nela quando modelou as sobrancelhas. E com frequência repetia uma história segundo a qual quem se perde em São Paulo nunca mais encontra o caminho de volta para casa. 

“Pegamos o metrô e eu, apavorada, fazia as mães descerem a cada estação com medo de nos perdermos”, lembra ela. Depois de darem seus depoimentos na Ouvidoria, chegaram ao Condepe, onde foram recebidas pela jornalista Rose Nogueira, presidente do conselho e membro do grupo Tortura Nunca Mais. 

“Foi lá que conhecemos pela primeira vez o que eram direitos humanos. A gente não tinha noção até a pedra cair no nosso telhado”, diz. “A Rose nos explicou quem eram as Mães da Praça de Maio, na Argentina. E a gente passou a se colocar no lugar de outras mães.”

Naquele dia, Rose tinha sobre a mesa uma pilha do livro “Crimes de Maio”, que o Condepe havia lançado poucas semanas antes, com textos de especialistas e relatórios da comissão independente que investigava as mortes. “A Rose me deu aquele livro e, no autógrafo, ela escreveu: ‘Débora, mãe modelo do Brasil’.”

Com o livro, Débora e as colegas da Baixada descobriram que os casos extrapolavam, em muito, as mortes de seus filhos. E começava ali uma nova fase da jornada do Movimento Mães de Maio. Débora e suas colegas de luta depuseram à Comissão de Justiça e Paz, participaram de ato no Conselho Regional de Medicina (Cremesp) e organizaram uma passeata de uma igreja ao cemitério de Santos para marcar o primeiro ano dos assassinatos. Débora lembra que pediu à prefeitura para que a polícia não estivesse presente ao ato. Mas conta que viaturas policiais cantaram pneus em frente à igreja. 

“Tentaram nos intimidar, nos colocar medo. Mas isso funcionou como uma munição de coragem”, avalia. “Eu era muito acelerada. Era barril mesmo, muito estourada. E disse: ninguém intimida as Mães de Maio porque lutar não é crime. Nós somos as verdadeiras defensoras de direitos humanos porque somos mães.”

Àquela altura, o grupo já tinha suas próprias propostas, como bordar os nomes dos policiais nos uniformes (para evitar que eles pudessem retirar os crachás de identificação ao cometer irregularidades) e o fim da revista vexatória nos presídios, que inclui nudez e agachamentos.

“Eu não sabia nem falar no microfone. Eu tinha vergonha. Mas a dor me ensinou a falar e a colocar as pessoas para pensar: ontem foi meu filho, amanhã pode ser qualquer outra pessoa”, afirma.

Em sua luta, repleta de pedras e percalços, mas também de avanços e parcerias, Débora encontrou a Conectas durante um evento que marcava os três anos dos Crimes de Maio, quando a organização lançou um relatório sobre todas as execuções ocorridas entre 12 e 21 de maio de 2006.

“O relatório era assustador e nos fez conhecer outras mães de vítimas daqueles crimes”, conta ela. Na representação dos casos no Judiciário, os assassinatos da Baixada Santista ficaram a cargo da Defensoria Pública, enquanto a Conectas ficou com o caso da chacina do Parque Bristol. Em 2009, a organização pediu a federalização das investigações do caso ocorrido na periferia Sul de São Paulo.

Depois de uma desconfiança inicial, Débora e as Mães de Maio se aproximaram da Conectas. “A gente embirrou muito e a gente tretou mesmo. Somos treteiras. Mas chegou uma hora em que percebemos que a gente tinha que caminhar lado a lado, no coletivo. Que a Conectas poderia nos dar esse colo já que não somos uma organização, mas um movimento”, diz. “Hoje, Mães de Maio e Conectas são comadres.”

Em 2010, o Movimento Mães de Maio pediu a federalização das investigações das mortes de seus filhos na Baixada Santista. E, em 2011, a Justiça Global e a Faculdade de Direito de Harvard lançaram o relatório São Paulo Sob Achaque, que expôs esquemas de corrupção, sequestro, extorsão e assassinato entre Estado e crime organizado. 

Dois anos depois, Débora recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos das mãos da presidenta Dilma Rousseff (PT). Em 2015, ela foi para os Estados Unidos através da Anistia Internacional para denunciar os crimes e, em 2016, lançou a Rede Nacional de Mães e Familiares, cuja construção teve apoio da Conectas.

“A Conectas virou comadre das Mães de Maio porque os direitos humanos estão no nosso útero”, diz ela, que viajou a Bogotá, na Colômbia, em 2018, para participar de uma audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 

“A Conectas se inscreveu e passou seu tempo para as Mães de Maio. E, ali, ganhamos uma confiança mútua muito grande por causa do lugar da fala”, explica. “Nós sempre pleiteamos que quem fala por nós somos nós mesmas, por mais que tenhamos parceria com quem quer que seja. Ao mesmo tempo, sabemos que só conseguimos avançar e multiplicar nossas lutas coletivamente. Não existe luta importante que possa ser vencida só no singular.

Em 2021, 15 anos depois dos Crimes de Maio, as autoridades ainda não explicaram as mortes ocorridas em 2006. Para Débora, são 15 anos de direitos humanos. “Eu só fui descobrir mesmo direitos humanos quando mataram meu filho. E aí eu descobri que direitos humanos somos nós mesmos: pessoas que lutam pelo direito à vida, moradia digna, comida, saúde e educação”, explica.  “As mães estão determinadas a parir uma nova sociedade.” (por Fernanda Mena e Fabiana Moraes)

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