A violação de competências constitucionais e a atuação antidemocrática da Justiça Militar no Brasil foram denunciadas em audiência realizada na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), na terça-feira (15). A audiência foi solicitada pelas organizações Conectas, IBAHRI (International Bar Association), IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Justiça Global e Terra de Direitos.
Daniel Sarmento, advogado e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, salientou que uma das características básicas das democracias constitucionais é a submissão dos militares ao poder civil. No entanto, a competência ampliada da Justiça Militar no Brasil inverte esta lógica democrática ao autorizar que a Justiça Militar julgue civis, “bem como militares envolvidos em casos de violação de direitos humanos”, afirma. Ainda de acordo com Sarmento, o desenho da Justiça Militar foi herdado da ditadura militar, paradoxalmente desde a redemocratização a competência da Justiça Militar não foi revista, para se adequar aos parâmetros internacionais de direitos humanos, pelo contrário, esta competência foi ampliada, inclusive, com a inclusão dos crimes de militares contra civis no exercício das atividades de segurança pública.
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Thiago Amparo, advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas, destacou que: “É um mito definir a Justiça Militar no Brasil como avançada ou democrática”. Segundo o professor, a Justiça Militar foi criada em 1808 e remonta à chegada da família real portuguesa ao Brasil. Desde sua origem não estabeleceu com clareza as fronteiras conceituais entre o julgamento de crimes militares e crimes políticos, bem como de réus militares ou civis. Amparo chama atenção também para o caráter autoritário da Justiça Militar: “Quando olhamos quem julga, como julga e quem é julgado, as três principais questões da Justiça Militar, percebemos um legado autoritário com militares da ativa julgando crimes e o ofensas às Forças Armadas e civis julgados pela Justiça Militar”.
Vitor Santiago, morador da Maré, começou sua fala contando que é vítima do descaso e da violência por parte dos militares. Durante uma ação de militares do Exército durante a ocupação realizada em 2015, sofreu disparos em seu carro, ficou paraplégico, teve lesão medular e uma perna amputada. “Lembro de não estar no lugar e hora erradas, eu estava no meu cotidiano, estava no carro com amigos e fomos abordados por soldados, fomos revistados. Após 15 minutos, outra patrulha alvejou o meu carro. Fiquei 90 dias internados no hospital, passei por uma série de cirurgias e minha esperança é que justiça fosse feita o mais rápido possível”. No entanto, em 2018, o cabo que atirou em Vitor foi inocentado pela justiça militar, o que, ao seu ver, prova o forte corporativismo: “É um militar que faz, um militar que julga e um militar que o inocenta”. “Faço essa fala na intenção de que não aconteça com outro, não queremos que outros negros, pobres favelados sejam assassinados ou tenham as vidas violadas”, afirma o morador da Maré. Concluiu seu relato afirmando: “O mais importante é que isto não ocorra com outras pessoas”.
O advogado e militante do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra) Cláudio Oliveira relatou que sua história é muito parecida com a de milhares de outras famílias injustiçadas pela concentração fundiária e injustiças sociais em todo país. “Historicamente as forças militares brasileiras foram usadas para cometer e assegurar a violência e a impunidade no campo. Os povos indígenas e depois os negros e negras foram os primeiros a amargar essa injustiça, seja pela escravização, pela segregação da terra e do território ou no sufocamento violento das lutas e mobilizações populares. O Estado sempre usou forças militares e sempre acobertou as barbáries por elas cometidas. Canudos, Quilombo dos Palmares, Guerra do Contestado são inúmeros os exemplos”, disse. Complementou ainda dizendo que este tem sido o papel da Justiça Militar do Brasil desde sua fundação: “assegurar a impunidade cometida por agentes militares, a mando do Estado Brasileiro, contra seu próprio povo, quase sempre em defesa de interesses privados, como a histórica grilagem de terras no país e a atual invasão de garimpos ilegais em terras indígenas”.
Após as falas da sociedade civil, foi concedido igual tempo para pronunciamento da delegação do Estado brasileiro. O advogado da AGU, Boni Soares, disse que existem 5 ações no Supremo Tribunal de Justiça sobre a competência da Justiça Militar. Uma sobre mudanças no CPM que aumentam a competência para julgar civis e outra, sobre as atividades subsidiárias, como GLO (Garantia de Lei e Ordem), apresentadas pela PGR em 2013. Ambas com julgamento previsto para esse ano. Uma terceira ação, também com julgamento previsto para 2022, trata do procedimento do Inquérito Policial Militar no homicídio contra civis. Por fim, mencionou as ações sobre mudanças no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar, que incorporaram crimes previstos na legislação comum, inclusive homicídio no âmbito de ações subsidiárias. O representante da AGU, por fim, ressaltou que nas ações em trâmite na Suprema Corte brasileira discute-se a convencionalidade dos dispositivos. Segundo afirma, “estamos provavelmente próximos de um julgamento do STF sobre constitucionalidade e convencionalidade”.
A Comissária Margareth Macaulay, Relatora para Pessoas Afrodescendentes, destacou que a população negra é a principal vítima dos crimes cometidos por militares, nas favelas e em outras áreas da periferia no “exercício” da segurança pública. Diante dessa constatação, indagou aos representantes do Estado quais medidas estão sendo adotadas para impedir as medidas de perfilamento racial que estão incluídas no sistema. Ressaltou, ademais, a questão de gênero, já que são muitos os relatos em diversos outros países de mulheres ou populações LGBTQIA+ que sofrem com violações ocasionadas por militares.
Como encaminhamento da audiência, foi solicitado pelas organizações que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos realizasse uma reunião de trabalho com os Ministros e Ministras do Supremo Tribunal Federal a fim de reforçar a importância do alinhamento da legislação interna com os parâmetros internacionais sobre o tema. A Presidenta da Comissão destacou a possibilidade da produção de um dossiê sobre todas estas temáticas relatadas tanto por Claudemar e Vitor, quanto pelos advogados que representaram a sociedade civil e fez constar nos assentamentos da audiência o pedido expresso para a reunião de trabalho.