“A relação que resultou na crise climática é anunciada pelos povos originários americanos desde sempre”, diz Ailton Krenak, escritor, pesquisador, ambientalista e líder indígena. Para ele, “é uma inteligência sensível de entender que tem coisas que precisam ficar estabilizadas no organismo da Terra. O colonialismo não entende fronteiras naturais, invade tudo furiosamente”.
Diante da emergência climática, uma das principais lideranças indígenas da atualidade mostra como uma prática predatória da floresta afeta os povos originários. Para ele, isso é racismo ambiental.
Na semana da Mobilização Global pelo Clima, a Conectas publica entrevista de Ailton Krenak para o e-book recém-lançado “Clima e Direitos Humanos – Vozes e Ações” (disponível neste link), produzido pela organização com o apoio do Instituto Clima e Sociedade.
Ailton Krenak – Essa relação vem de um modo de encarar o mundo pelo qual o ser humano é a medida de todas as coisas. O pensamento colonial é potente porque usa instrumentos como a economia, que institui globalmente a posse de coisas e territórios. Ele se associa à apropriação de tecnologias que aceleram o extrativismo sobre ecossistemas, oceanos, montanhas e desertos. No século 20, nos tornamos capazes de roer o planeta inteiro.
Ailton Krenak – A relação que resultou na crise climática é anunciada pelos povos originários americanos desde sempre. Está na carta atribuída ao Chefe Seattle [anglicização de Si’ahl, líder dos povos Suquamish e Duwamish, que viveu na virada do século 18 para o 19], base do movimento ambientalista. Ele diz ao governo dos Estados Unidos: “Tudo aqui é vivo, o cervo, a brisa da manhã, a relva, a montanha. Você quer comprar essa terra que para nós é sagrada. Não entende que vai morrer e ser enterrado nela?”. É uma profecia, que diz: “Se você não andar com cuidado, um dia vai despertar imerso no seu próprio vômito”. Em “A Queda do Céu” [ed. Companhia das Letras, 2015], Davi Kopenawa diz que a epidemia que vivemos era anunciada pelos Yanomami como a Xawara, que ocorre quando o ouro é tirado da terra e entra em contato com a atmosfera, vira veneno, adoece as pessoas, a floresta. É uma inteligência sensível de entender que tem coisas que precisam ficar estabilizadas no organismo da Terra. O colonialismo não entende fronteiras naturais, invade tudo furiosamente.
Ailton Krenak – Há 10 ou 15 anos, brasileiros mais inteligentes estavam empolgados com o fato de o Brasil iniciar a extração do petróleo em uma plataforma marítima. As comunidades que estavam no caminho passaram a ser nada. Estou na beira do Rio Doce, que virou um mar de lama pelo extrativismo da Vale. Os povos indígenas sofrem com a invasão de seu mundo, por uma prática caótica, predatória. O homem de fora da floresta, que consome hambúrguer na Europa, precisa dela morta. Isso é racismo ambiental.
Ailton Krenak – É uma narrativa mentirosa anunciada após a constatação, em 1976, de que entrávamos em uma rota incontrolável de mudança climática. Mesmo quando se fabrica algo com todos os controles, são necessários materiais que não são repostos na natureza. Como produzir algo sustentável se o sistema extrativista é soberano e altera os ciclos de vida na Terra? Sustentabilidade é um selo vendido para otário, que vai durar porque tem gente comprando. Tem um caminhão-pipa que anda 200 km, busca água de outra bacia e traz para a aldeia, porque a do Rio Doce está drogada. Se você perguntar, o gerente de sustentabilidade dirá que a água é sustentável, porque tem licença, cumpre um protocolo. É só uma ferramenta de análise de um sistema fechado. Para quem está de fora, acreditar é falta de inteligência, de coragem de pensar. Seria interessante se chamássemos de sustentabilidade do fim. Todo mundo sabe que já entramos pelo cano.
Ailton Krenak – O sistema de Justiça será cada vez mais usado por humanos para se protegerem na sustentabilidade do fim. Mas não pelos outros seres. Humanos só falam sobre direitos humanos, e o direito ambiental é antropocêntrico, não tem interesse sobre se a floresta vai morrer, o rio vai ficar podre. Confesso que estou de saco cheio. Temos tantos direitos que chamamos o mundo de desgraça.