O Dia das Mães de 2006 marcou para sempre a vida de Débora Maria da Silva, uma das líderes fundadoras do Movimento Independente Mães de Maio. Para ela, que também celebrava seu aniversário naquela mesma data, o mês de maio tornou-se um período marcado por um vazio dilacerante. Três dias depois da comemoração, seu filho Edson Rogério Silva dos Santos, então com 29 anos, foi vítima de um dos mais terríveis massacres da história do Brasil: os Crimes de Maio.
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Dezoito anos depois da chacina que tirou a vida de pelo menos 500 pessoas na Baixada Santista, na cidade de São Paulo e em outras regiões do estado paulista, não houve a responsabilização do Estado ou de seus agentes.
Em agosto de 2023, o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), arquivou o Procedimento Investigatório Criminal sobre 12 mortes na Baixada Santista ligadas aos Crimes de Maio. Os promotores afirmaram que as testemunhas não identificaram os responsáveis de forma conclusiva e não há mais diligências a serem realizadas no momento.
Segundo informações da Ponte Jornalismo, embora a decisão de arquivamento tenha sido tomada em 2023, somente em abril de 2024 o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo tomou conhecimento desse fato, em resposta a um pedido de informações sobre o andamento das investigações junto ao Gaeco, solicitado em novembro do ano anterior.
Assim, o vazio das mães ganha outras dimensões. “Além de não ter mais o Mateus, tenho que conviver com a impunidade, porque as autoridades competentes não têm interesse em investigar essa autoria”, escreveu Vera de Freitas, no livro “Do luto à luta”, uma coletânea organizada pelas Mães de Maio. “Sofro junto com as outras mães que perdem seus filhos assassinados. Infelizmente, o extermínio continua sem que ninguém faça nada para impedi-lo.”
O lamento de Vera não é força de expressão. Quase vinte anos depois dos Crimes de Maio, entre 2023 e 2024, as Operações Escudo e Verão, feitas pela Polícia Militar, na mesma Baixada Santista, mataram 84 pessoas. A onda de assassinatos foi uma resposta à morte do policial militar da Rota Patrick Bastos Reis, em julho de 2023.
Uma reportagem da revista piauí revelou que, nessa guerra, até mesmo as mães dos policiais têm seus direitos violados. Conforme relata o jornalista João Batista Jr., ao receber a notícia da morte de seu filho, Patrick, Cláudia desejava levar o corpo para ser sepultado no jazigo da família, na cidade de Santa Maria. Mas ela foi surpreendida por um comandante da Rota, que afirmou que não seria possível realizar o desejo, alegando uma suposta regra que exigia que o corpo permanecesse no mausoléu da Polícia Militar, no Cemitério do Araçá, em São Paulo, por pelo menos cinco anos. Essa regra nunca existiu.
Depois de ver o enterro do filho se transformar em um ato político, com a presença do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas — que afirmou não estar “nem aí” para as denúncias apresentadas à ONU pela Conectas e Comissão Arns sobre as irregularidades na operação — e do secretário de segurança pública de São Paulo, Guilherme Derrite, Claudia busca na justiça o direito de reaver os restos mortais do filho. “O Derrite nunca se deu ao trabalho de me ligar”, disse ela, à piauí.
A revista ainda mostra que o próprio Derrite já foi investigado por 16 homicídios ocorridos durante operações policiais nas quais participou, em anos anteriores, mas os inquéritos não apontam o autor do disparo final.
“A narrativa padrão de confronto não só não se sustenta diante da desproporcionalidade do uso da força de parte das polícias do Brasil, cujos dados estatísticos revelam desalinhamento com os princípios de progressividade, proporcionalidade e legalidade, ela decorre de investimentos extremamente ineficazes, ineficientes e inefetivos dos recursos do Estado num modelo de policiamento que não é capaz de reduzir a violência, conforme temos atestado nas últimas décadas”, escreveram os pesquisadores Dennis Pacheco e David Marques, no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
De acordo com eles, prova disso é o fato de 7 das 10 cidades com as maiores taxas de mortes violentas intencionais (MVI) do país integrarem os estados com as polícias mais violentas do país (Amapá e Bahia). “Quando olhamos para as 20 cidades com as maiores taxas de MVI, 14 estão nos estados com polícias mais violentas do país (Amapá, Bahia e Rio de Janeiro). Obviamente, polícias violentas não reduzem a violência”, concluíram.
No dia em que mais duas mortes se somaram ao resultado final da Operação Verão, em 22 de março de 2024, as Mães de Maio, com apoio da Conectas e do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp, lançaram o projeto “Fortalecendo o alcance e o impacto dos movimentos de direitos humanos no Brasil”, uma iniciativa que pretende fortalecer a luta por justiça e memória das vítimas da violência estatal no Brasil.
“Precisamos fazer com que cada corpo negro perdido nesa luta continue a ser semente para que sua memoria seja respeitada, para que sua luta seja valorizada e para que a gente construa, de fato, uma sociedade democrática”, disse o advogado Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas, no evento, que foi transmitido no YouTube. “Uma sociedade não pode ser chamada de democrática completando 18 anos dos Crimes de Maio sem resposta.”
Em março, as Mães de Maio lançaram também um documentário, que mostra trechos de audiências, eventos e passeatas, e a cartilha “Escute as Mães de Maio: vamos parir um novo Brasil”, a fim de orientar parentes de vítimas do Estado.
A história dos Crimes de Maio revela as profundas feridas deixadas pela violência estatal no Brasil. Mas, enquanto as mães enfrentam o silêncio das autoridades, elas reforçam a luta por memória, verdade e justiça. Em meio às sombras da impunidade, essas vozes clamam por um país onde a vida e a dignidade de cada indivíduo sejam respeitadas. ”Nós vamos parir um novo Brasil”, diz Débora da Silva, “uma nova sociedade”.