Um vereador da Câmara Municipal de São Paulo iniciou nos últimos dias a coleta de assinaturas entre seus colegas parlamentares para instaurar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) com objetivo de investigar supostas irregularidades na atuação de organizações da sociedade civil que prestam assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade no centro da cidade de São Paulo.
A proposta teve o apoio de 23 vereadores e alcançou conhecimento nacional quando o vereador disse que a comissão poderia convocar o padre Júlio Lancellotti a depor como investigado. Vigário da Arquidiocese de São Paulo para a população de rua, padre Júlio trabalha há décadas na defesa dos direitos humanos.
A pressão para que padre Júlio não fosse investigado fez com que pelo menos oito vereadores retirassem a assinatura para a abertura da CPI. Agora, há uma incerteza se a proposta vai adiante ou não. O tema só será avaliado pelo Colégio dos Líderes no retorno do recesso parlamentar.
O padre Júlio Lancelloti não é o único na mira dos parlamentares. A CPI quer abranger diversas entidades que realizam trabalhos de redução de danos, sinalizando uma investigação generalizada e com foco de organizações, coletivos e movimentos que atuam no acolhimento e na defesa das pessoas em situação de rua que fazem uso de drogas. Já faz alguns anos que o grupo político proponente da comissão persegue coletivos que atuam na região da Cracolândia.
“Há um jogo político por trás dessa proposta, que passa pela intimidação de pessoas em situação de rua e de defensoras dos direitos humanos nos territórios, muitas vezes os únicos a denunciarem violência institucional e a distorção da política pública na cidade: uma política de segregação e não políticas de cuidado, saúde e atenção. A CPI mira em pessoas e coletivos que promovem assistência social e redução de danos, quando deveria focar em questionar o investimento público em políticas sem eficiência comprovada e não previstas nas RAPs”, afirma a advogada Carolina Diniz, coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.
Preocupa a utilização de meios legais para criminalizar organizações, movimentos sociais, ativistas e pessoas defensoras dos direitos humanos. Como demonstra relatório do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), esta criminalização não se manifesta apenas de forma explícita: inclui “as ameaças tácitas e aquelas que se dão por meio de processos e procedimentos de outros âmbitos do direito que não o criminal — por exemplo, o administrativo”.
O relatório do IDDD também aponta que a atuação de coletivos na região da Cracolândia – justamente o foco da proposta da CPI – “é marcada por forte perseguição de grupos políticos e parlamentares que defendem a repressão e a violência como forma de lidar com os conflitos sociais existentes na Cracolândia e no seu entorno”.
No âmbito do Congresso Nacional, outras comissões parlamentares recentes também foram utilizadas na tentativa de criminalizar a atuação de movimentos sociais e ONGs. Entre elas, a CPI do MST, que terminou em setembro de 2023 sem votar o relatório final, e a CPI das ONGs, que indiciou apenas uma pessoa.
“Ainda que essas investigações legislativas não resultem em indiciamentos ou condenações, as perseguições e as tentativas de criminalização já são um grande problema para quem defende os direitos humanos no Brasil. Isso porque há ataques à honra das pessoas, uma condenação no ‘tribunal da internet’, além, claro, da necessidade de utilização de recursos financeiros para se defender legalmente dos ataques”, afirma Diniz.
A advogada da Conectas também lembra que essas supostas denúncias sem fundamento estigmatizam o importante trabalho que as organizações da sociedade civil realizam na defesa dos direitos e no atendimento a pessoas em situação de vulnerabilidade. Com isso, o enfrentamento a violações de direitos, deixa de estar no foco da atuação estatal.