Voltar
-
02/07/2014

Copa segue, democracia retrocede

Intimidação e ilegalidades marcam ação da PM durante ato em São Paulo



A ação da Polícia Militar durante ato realizado ontem, 1/7, na Praça Roosevelt, em São Paulo, voltou a violar uma longa lista de direitos e liberdades constitucionais. Mais de 300 manifestantes sentados, atentos a um debate público pacífico sobre a prisão dos ativistas Fábio Hideki e Rafael Lusvarghi durante protesto contra a Copa do Mundo no dia 21/6, foram intimidados, presos arbitrariamente e agredidos com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha.

“Quando a Copa passar, restará ao Brasil um retrocesso muito sério no âmbito das liberdades fundamentais”, afirma Lucia Nader, diretora Executiva da Conectas. “O que vimos ontem na Praça Roosevelt foram tropas despreparadas para lidar com liberdades fundamentais e, por outro lado, fortemente armadas e orientadas no sentido da repressão.”

Intimidação

Mesmo antes do ato, que foi amplamente divulgado nas redes sociais, todas as entradas da praça estavam completamente bloqueadas pelas tropas regulares e pelo choque, que também se ocupava de filmar os manifestantes. A cavalaria e a Rocam completavam o cerco total da praça, repetindo o padrão registrado em manifestações anteriores (como nos dias 12/7/14 e 13/6/13).

Integrantes da Conectas testemunharam a revista de pessoas que tentavam chegar ao local do debate. Muitas delas tinham de se identificar com documentos, mesmo sem motivo aparente, para superar os bloqueios.

Esse tipo de cerco policial, que limita e viola os direitos de expressão, movimento e reunião, já foi condenado pelo relator especial da ONU para a liberdade de reunião e associação e pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

Sequência de violações

Os policiais exibiram toda a força de seu novo aparato repressivo. A tropa vestia traje conhecido como ‘robocop’, que não permite qualquer identificação. Segundo a parâmetros nacionais e internacionais, o uniforme das forças de segurança deve sempre permitir identificação clara e individual.

Ao questionarem a violação da norma, os advogados Daniel Biral e Silvia Daskal, do grupo Advogados Ativistas, foram violentamente presos sob acusação de desacato.

Assista aqui o vídeo que documenta o momento da prisão.

Outros quatro manifestantes foram detidos durante o ato, mostrando que a PM paulista continua valendo-se da ‘prisão para averiguação’ – recurso inconstitucional extensivamente denunciado por organizações e movimentos sociais ao longo de 2013.

Durante uma das abordagem, manifestantes se mobilizaram para impedir a prisão de um vendedor ambulante. Como vem se tornando rotina em protestos, a tropa de choque dispersou a aglomeração com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha e chegou a usar spray de pimenta contra jornalistas que registravam a cena – o que viola os princípios de proporcionalidade e estrita necessidade.

Assista aqui o momento em que a tropa de choque dispersa os manifestantes.

Estado de Exceção

Para Conectas, a polícia militar paulista mostrou, mais uma vez, sua vocação para ignorar garantias constitucionais e criar um ambiente de exceção. Essa tendência assume contornos ainda mais graves quando se tem em conta o pesado investimento feito antes da Copa do Mundo para ampliar sua capacidade repressiva, com novas tecnologias, armas e munições.

“As violações já eram extremamente graves antes do evento, mas a cada dia somos negativamente surpreendidos por uma policia que não tem limites”, avalia Lucia Nader.

O que diz a lei

A ação policial testemunhada pela Conectas viola expressamente garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988. O direito à liberdade de expressão e o direito à reunião em locais públicos, independente de autorização, são reconhecidos no artigo 5o, que também condena o cerceamento da liberdade de ir e vir.

Não há nenhum dispositivo nas leis brasileiras que permita “prisões para averiguação”. O texto Constitucional, pelo contrário, é enfático na garantia das liberdades individuais e impede qualquer norma em sentido contrário.

O mesmo artigo 5o estabelece explicitamente que toda pessoa detida tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão – outro ponto violado pela PM durante a ação de ontem, como fica evidente no vídeo que registra a detenção dos advogados.

O próprio Regulamento Disciplinar da Polícia Militar (RDPM), vale lembrar, caracteriza como transgressão a ausência de identificação nos uniformes policiais.

Parâmetros internacionais

O direito à reunião e à liberdade de expressão são descritos pelos artigos 19o e 10o da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e, ainda, pelos artigos 13o e 15o da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Segundo a Declaração Universal, “toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

A violação sistemática desses direitos pela polícia paulista demonstra um profundo descaso pelos compromissos assumidos pelo Brasil.

Outros parâmetros internacionais regulam a atuação das polícias em contexto de protestos, como é o caso dos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pela ONU em 1979, e dos relatórios sobre Segurança Cidadã e Direitos Humanos (2009) e Situação dos Defensores dos Direitos Humanos nas Américas (2012), ambos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Eles coincidem na proibição do uso de armas letais, no reforço dos princípios de proporcionalidade e estrita necessidade e na exigência de identificação clara e individual de cada membro da tropa – outro dever ignorado pelas autoridades paulistas, apesar das reiteradas denúncias. Importante ressaltar que nenhum hipotético distúrbio pode relativizar o cumprimento desses deveres.

O cerco mantido ao longo de todo o ato também, por sua vez, não possui qualquer amparo legal. Segundo o relator especial da ONU para a liberdade de reunião e associação, esse táticas similares ao “kettling” são “muito raramente justificáveis”. Segundo decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, “medidas para controlar multidões não devem ser usados direta ou indiretamente por autoridades nacionais para desencorajar protestos”.

Informe-se

Receba por e-mail as atualizações da Conectas