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24/10/2025

Conflito na República Democrática do Congo: por que se fala tão pouco sobre essa crise?

Foto: Agência Opheia/Reprodução Instagram Foto: Agência Opheia/Reprodução Instagram


O conflito que assola a República Democrática do Congo (RDC) representa uma das maiores e mais complexas crises humanitárias do nosso tempo. Longe de se restringir a disputas étnicas, a violência no país está profundamente ligada à exploração de minérios essenciais para a transição energética e para a indústria tecnológica global — como o cobalto, usado em baterias de carros elétricos e dispositivos eletrônicos.

Enquanto potências internacionais mantêm forte presença econômica na região, a omissão política e a escassa cobertura jornalística contribuem para invisibilizar o sofrimento da população congolesa. Para compreender melhor o conflito e as razões de seu apagamento no debate público, a Conectas conversou com Pedro Borges, cofundador da Alma Preta Jornalismo. Jornalista e ativista de direitos humanos, Borges destaca que o conflito na RDC “está muito marcado por toda essa discussão de transição energética”. “É um debate muito atual que está colocado ali, e é um conflito que está super motivado a partir disso. Quando a gente traz uma ideia de que é um grupo de africanos, pessoas negras, que estão brigando por uma desavença, porque um tem problema com o outro, um não gosta do outro — na verdade, não é isso. Isso não consegue explicar em nada”, afirma.

Confira a entrevista completa: 

Conectas: Como foi sua experiência cobrindo o conflito na República Democrática do Congo? Quais as motivações e principais desafios desse trabalho jornalístico?

Pedro Borges: Eu acho que tem uma dinâmica muito explícita colocada sobre a ausência de uma cobertura, sobre o que acontece na República Democrática do Congo e o que acontece em outros países africanos. Então, acho que aí tem uma coisa jornalística, de um critério jornalístico mesmo. 

E, como jornalista, a gente vê uma lacuna muito grande. Como jornalista que trabalha com direitos humanos, com a questão racial, a gente vê uma lacuna muito grande sobre a cobertura da questão racial no Brasil, com buracos muito grandes. 

E, a nível internacional, isso se repete. Tudo aquilo que diz respeito ao continente africano exige uma lacuna enorme. A gente vê um cenário de muitas guerras, e as guerras têm tomado conta daquilo que está sendo pautado no mundo. Mas, no continente africano, esses conflitos não são pautados. Então, acho que essa é uma das motivações. 

Além da questão também, saber que esse conflito na RDC está muito marcado por toda essa discussão de transição energética. É um debate muito atual que está colocado ali, e é um conflito que está super motivado a partir disso. Então, acho que foram essas as principais motivações.

Agora, desafios. Desafios são muitos. Tem um desafio da língua. Então, eu tive que aprender pelo menos o básico do francês para conseguir me comunicar com os congoleses, mas não são todos os congoleses que falam francês. Então, em vários casos, eu acabava tendo que recorrer mesmo a colegas que estavam juntos, que faziam quase uma interpretação do francês para o lingala ou para o suahili, pelo menos nos lugares onde eu fui. 

Tem um desafio de segurança. Estou indo para um país que está em conflito. Então, eu precisei fazer uma preparação muito grande, desde uma preparação com o exército brasileiro, que eu participei de uma formação, uma formação com o CECOPAB. O Brasil manda militares para as Nações Unidas e tem um centro de formação. Então, eu tive que fazer uma preparação muito grande, tive que também me preparar no sentido de equipamentos de segurança. E é sempre uma preparação em uma primeira viagem, ainda mais quando você vai sozinho. Por mais que você se prepare muito, é uma primeira viagem. Então, você precisa mesmo tomar muito cuidado. 

E aí, enfim, para além disso, eu tive que cuidar, tive também desafios muito grandes do que diz respeito à minha saúde, porque é um país que tem vários surtos, doenças também estão ali. Algumas que já foram, inclusive, erradicadas no Brasil, mas a gente acaba tendo que lidar lá. Então, eu tive que me preparar também dessa maneira. 

Claro, você vê como são muitos desafios e muitas preparações para fazer uma cobertura dessa. E eu acho que tem um desafio jornalístico mesmo ali, propriamente dito, que é, ou precisa conhecer a história de um país, um país grande, um país também com uma diversidade enorme na sua parte interna. Então, existem os desafios jornalísticos mesmo, procurar fontes. A República Democrática do Congo não tem muita transparência. Então, mesmo a checagem de informações não é muito fácil. São todos elementos muito difíceis.  

Conectas: Como você avalia a resposta da comunidade internacional, especialmente frente à crise humanitária que afeta milhões de pessoas no país?

Pedro Borges: Bom, a comunidade internacional é completamente omissa naquilo que acontece lá. A comunidade internacional está presente lá. Acho que é uma maneira muito leviana, inclusive racista, de acreditar que esse é um conflito pura e simplesmente étnico.

Quando a gente traz isso, a gente traz uma ideia de que é um grupo de africanos, pessoas negras, que estão brigando por uma desavença – porque um tem problema com o outro, um não gosta do outro. E, na verdade, não é isso. Isso não consegue explicar em nada.

Existe um interesse dessa chamada comunidade internacional, que a gente, muitas vezes, pode quase que resumir à Europa e aos Estados Unidos, mas existe um silenciamento na arena política, na arena pública, na arena de debate, mas existe uma presença estrondosa dessa comunidade internacional no plano do ponto de vista econômico. Então ela está lá, representada por meio das suas grandes empresas, por meio das suas multinacionais, por meio dos seus agentes, por meio das suas embaixadas, que são todas muito expressivas na República Democrática do Congo. Então a comunidade internacional é também leviano dizer que ela ignora.

Na verdade, ela está muito consciente daquilo que ela está fazendo. Os países estão muito presentes lá e têm uma presença significativa. A Monusco é a maior missão de paz da ONU.

A Monusco é a maior missão de paz das Nações Unidas. Como é que a gente pode dizer que a comunidade internacional não está lá? Agora não existe vontade política de encerramento desse conflito, porque muita gente sempre ganha muito dinheiro com isso.

Conectas: Diante da baixa cobertura da situação na República Democrática do Congo pela imprensa tradicional, nacional e internacional, como o Alma Preta busca romper essa lógica e que ações concretas a sociedade civil brasileira pode adotar?

Pedro Borges: Bom, eu sou um jornalista negro, faço parte do Alma Preta, sou um dos fundadores do Alma Preta, e eu acho que, assim, a gente, todos, muitos como nós, temos essa, que é uma reclamação minha, de, tipo, caramba, ninguém cobre, a imprensa corporativa brasileira, a imprensa comercial, ela não cobre. E mesmo na imprensa, vamos dizer assim, mais progressista, uma imprensa independente não cobre esse tema. E aí eu fico assim, cara, se não cobre esse tema, vamos lá cobrir nós, né? Vamos lá fazer a gente essa cobertura, a gente quanto a Alma Preta. Então, acho que é isso, a gente surge com esse propósito, né, de fazer algumas coberturas que a imprensa corporativa não vai fazer. 

A gente se joga para fazer essa cobertura, e temos continuado a fazê-la, né? Agora, o quanto a gente tem rompido com o silêncio, não sei. Aí eu acho que, talvez, seja interessante outras pessoas avaliarem isso. Agora, a gente acha que tem hoje uma repercussão interessante, alguns espaços no Brasil, e a gente tem esse propósito de fazer sim, é uma cobertura, acho que é uma cobertura que tem pautado algumas pessoas, né, algumas pessoas importantes. Então, acho que nesse sentido, a gente tem, posso dizer que temos alguns avanços a partir da cobertura. E houve também algumas experiências, né, junto da imprensa corporativa, em que a gente poderia, que a gente conseguiu também ter um alcance muito grande, né? 

Então, eu posso te falar do episódio que a gente participou do assunto sobre a República Democrática do Congo, com a entrevista com a Natuza Nery, e ali a gente teve um alcance muito significativo, pensando que a gente está falando do podcast mais diário, mais ouvido da América Latina, né? Então, é isso, acho que a gente tem feito esse, tentado romper esse silêncio dessa maneira. Agora, a imprensa, ela é parte da sociedade, né? Ela é uma parte em que a imprensa e a sociedade se retroalimentam, né? Então, existe pouco apelo social também, mas também existe pouca cobertura, e a imprensa vai dizer que também é pouca repercussão também que está acontecendo, é pouca repercussão, pouca audiência do que acontece. É um ciclo, né? Agora, não existe interesse, que é explícito o fato, existe interesse por parte da imprensa brasileira em fazer essa cobertura. E aí, eu reforço também aquilo que eu trouxe no início, acho que a imprensa brasileira não vai também fazer uma cobertura, porque são países africanos, são pessoas negras, não existe também uma identificação de humanidade por parte do público e por parte também desses canais de comunicação. Então, não são sujeitos que são dignos de uma notícia, não são sujeitos que são dignos de uma matéria, de uma denúncia, que vá mostrar as barbaridades que estão acontecendo e, por exemplo, questionar o Itamaraty, questionar o governo brasileiro com relação ao expulsionamento. 

Vale lembrar que agora, recentemente, o presidente brasileiro, o presidente Lula, esteve na abertura da Assembleia Geral da ONU e ele fez um discurso falando sobre uma série de pontos. Um dos pontos mais importantes, o Lula fala muito sobre o multilateralismo, o Lula falou muito sobre a violência que é feita em Gaza, o Lula falou muito sobre todos esses aspectos, mas o Lula não falou, não se pronunciou sobre os conflitos que acontecem no continente africano. E na mesma Assembleia Geral da ONU, o presidente da República Democrática do Congo, quando foi se pronunciar, falou sobre o genocídio silencioso de que os congoleses são vítimas. Acho que isso diz muito sobre não só o Brasil, mas também o Brasil. As opções do presidente brasileiro também estão muito em acordo com aquilo que a sociedade brasileira vai demandar dele. A sociedade brasileira, mesmo os setores progressistas, mesmo a imprensa e tudo mais, não vai cobrar o presidente brasileiro de se pronunciar sobre o assunto porque não considera isso importante. 

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