As CTs (Comunidades Terapêuticas) – entidades privadas de privação de liberdade para tratamento de pessoas que fazem uso problemático de drogas – receberam, entre 2017 e 2020, o total de R$560 milhões do poder público. Todo esse montante, que é somado entre as esferas federal, estadual e municipal, tem tendência de aumentar nos próximos anos. De um ponto de vista orçamentário, a aprovação da Lei Complementar 187/2021, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, dá direito às CTs de buscarem imunidade tributária, uma espécie de financiamento público indireto.
Estas são algumas das conclusões que fazem parte do levantamento inédito realizado pela Conectas Direitos Humanos e pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Intitulado “Financiamento público de comunidades terapêuticas brasileiras entre 2017 e 2020”, o documento foi divulgado nesta segunda-feira (25).
Segundo o estudo, as Comunidades Terapêuticas oferecem, declaradamente, tratamento baseado no isolamento, na abstinência e na espiritualidade. A pesquisa revela que não há padrão de fiscalização e transparência sobre o tipo de serviço contratado, sobre a composição de seu custo, dos seus insumos, dos produtos esperados e, principalmente, de seu impacto e de sua efetividade como política de tratamento, o que deveria orientar a administração pública.
De acordo com a advogada Carolina Diniz, assessora do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas e coordenadora do projeto que originou o relatório, a falta de definição precisa sobre a natureza das CTs dificulta o controle público e de setores da sociedade dedicados à defesa dos direitos humanos e ao acompanhamento do uso de verba pública.
“Desde 2016, intensificou-se o financiamento em CTs no país, ao passo que começaram a ser reduzidas as verbas destinadas à saúde e à Rede de Atendimento Psicossocial. Isso configura uma alteração no rumo da política de drogas no Brasil, sem respaldo em evidência científica sobre a efetividade de tratamento. Na prática financiam-se instituições de privação de liberdade em detrimento de políticas de cuidado e de redução de danos”, afirma Diniz.
Para a advogada, esses pontos servem como um alerta sobre a relação problemática dessas organizações com o poder público: “É um retrocesso na política de saúde mental na perspectiva antimanicomial, que foi desenvolvida a partir de muita luta da sociedade civil”, explica Diniz. “O dinheiro público está sendo direcionado a instituições privadas, muitas de cunho religioso, sem controle estatal e social”.
Além de receber recursos do poder Executivo em diferentes esferas, as chamadas emendas parlamentares são também usadas para estreitar relações entre o poder Legislativo e as comunidades terapêuticas. A Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas formulou um guia para facilitar a destinação deste recurso no caso específico das CTs. Segundo a pesquisa, o valor pago com emendas parlamentares entre 2017 e 2020 estaria acima de R$30 milhões. Não há, contudo, transparência no repasse destes recursos e os valores podem ser ainda maiores.
Há no Congresso Nacional uma Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas composta de 180 Deputados Federais e 20 Senadores. Os parlamentares estão distribuídos por todo o espectro político, de integrantes da base governista à oposição. Destaca-se que a aprovação da Lei Complementar 187/2021, que concedeu imunidade tributária às CTs, ocorreu sem que fosse realizado Estudo de Impacto Orçamentário e contou com a oposição de apenas um partido político.
De acordo com a pesquisa, na esfera federal o total financiado (2017-2020) em valores nominais foi de R$293 milhões, o que corrigido pelo valor da moeda para 2020, o montante atingiu R$309,3 milhões. O aumento de 2017 a 2020, em valores corrigidos, foi de cerca de 109%. A distribuição por região foi (em ordem): Sudeste (36%); Sul (28%); Nordeste (22%); Centro-Oeste (9%) e Norte (5%). Em proporção por 100 mil habitantes, o estado que mais recebeu foi Alagoas, seguido por Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Para se obter os valores de repasses de verbas públicas, a pesquisa se debruçou, primeiro, nas peças do planejamento orçamentário do governo federal – em especial o Plano Plurianual e a Lei Orçamentária Anual do atual Ministério da Cidadania. Já a consolidação de dados sobre recursos oriundos de estados, Distrito Federal e prefeituras de capitais se baseou em um conjunto de questões amparadas na LAI e em busca nos portais de transparência para assegurar que o levantamento pudesse ser cotejado por meio de duas fontes de dados diante da impossibilidade de se chegar ao grau de detalhamento do levantamento federal em mais de 53 diferentes entes governamentais.
De acordo com Maurício Fiore, coordenador da pesquisa e pesquisador do Cebrap, o estudo enfrentou dificuldade na obtenção de dados, mesmo se valendo da LAI.
“A sensação que dá é que houve um retrocesso na transparência, parece que alguns gestores públicos aprenderam como a LAI funciona e agora se resguardam no mau sentido para tentar burlar a lei e criar obstáculos. No caso das CTs, o que atrapalhou, por exemplo, é a imprecisão da própria política”, conta Fiore ao ressaltar que o detalhamento de pagamentos, rubricas orçamentárias e outras informações para trabalhar com base de dados são de difíceis acessos.
Ele diz ainda que o problema maior acontece nos estados e municípios, pois é mais complexo localizar de onde saem os recursos para as CTs, seja nas pastas de saúde, justiça ou assistência social. “O que me faz inclusive ter vontade de continuar com o tema, devido também ao crescimento muito expressivo dos recursos e a expansão para níveis de governos”, almeja.
O relatório acompanha um parecer jurídico que analisa a Lei Complementar 187/2021, que incluiu as instituições CTs como elegíveis à Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social e, portanto, beneficiária de imunidade tributária. Segundo o parecer, a inclusão das CTs representa, na prática, a criação de uma quarta categoria de organização imune às contribuições sociais (impostos), ao arrepio da Constituição Federal.
Além disso, criou-se um tratamento legislativo não isonômico com relação a outras espécies de pessoas jurídicas sem fins lucrativos atuantes nas áreas relacionadas, mas não reconhecidas como assistência social, saúde ou educação.
A pesquisa ressalta ainda que a Lei Complementar foi aprovada sem a realização de estudo de impacto orçamentário e financeiro, e, portanto, estimativa da renúncia fiscal do Poder Executivo, contrariando a previsão da Emenda Constitucional 95, através do Art. 133.