Quando policiais militares do Ceará realizaram uma paralisação em fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro não tardou a defender a corporação, que cruzou os braços e fechou batalhões reivindicando melhores salários. Em apenas 48 horas, o estado registrou 51 mortes, contra uma média de seis assassinatos por dia, de acordo com levantamento do G1.
Em mais um aceno à sua base de aliados, composta em parte por policiais e militares, Bolsonaro minimizou a ilegalidade do evento, classificando-o como uma greve, não um motim — mesmo que a Constituição proíba paralisações do tipo.
Um ano depois, circulam no Congresso Nacional dois projetos de lei orgânica que visam mudanças nas normas que regem as polícias civil e militar. Apesar das regras atuais, que remontam à ditadura militar, clamarem por alterações, as mudanças propostas parecem ser mais um aceno político à base política bolsonarista nas corporações do que uma proposta de reforma no modelo de segurança pública.
Documentos obtidos pelo jornal O Estado de S.Paulo mostram que os projetos visam a autonomia administrativa e financeira das polícias, reduzindo o poder dos governadores e, entre outros pontos, propondo a criação do Conselho Nacional de Comandantes Gerais da Polícia Militar, com assento nos ministérios da Defesa e da Justiça, o que deslocaria o poder das polícias do âmbito estadual para o federal. Em último caso, segundo especialistas ouvidos pelo jornal, isso abriria caminho para a criação de um projeto de poder paralelo.
O advogado Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, acredita que os projetos não dialogam com a principal agenda que as organizações da sociedade civil e o Estado brasileiro têm na segurança pública. “Empoderar as instituições no momento em que vemos o recrudescimento do autoritarismo de um governo que leva adiante uma necropolítica flagrante merece preocupação”, observa.
Para Sampaio, as propostas podem deteriorar mecanismos de controle essenciais para a sociedade. “A demanda mais urgente para o debate da segurança pública e das instituições policiais deve ser o controle da letalidade e do racismo institucional, por meio do fortalecimento de mecanismos de controle social”, complementa.
Preparados por entidades representativas e parlamentares oriundos das corporações, os projetos não parecem se preocupar com uma maior adequação à Constituição de 1988, nem com a efetividade do policiamento. “A palavra ‘policiamento’ aparece três vezes nas mais de 11 mil palavras do texto. ‘Polícia’ foi grafada 17 vezes, mas a palavra ‘militar’ aparece em 274 oportunidades — o que mostra não só um claro retrocesso institucional, mas um conflito quanto à definição de sua identidade institucional”, observaram na Folha de S. Paulo o ex-ministro da Defesa e Segurança Pública Raul Jungmann e o coronel reformado e ex-secretário nacional da Segurança Pública José Vicente da Silva Filho.
Enquanto isso, a preocupação ganha contornos alarmantes com o impulso das próprias ameaças de Bolsonaro. Após a invasão do Capitólio, na tentativa de golpe incentivada por Donald Trump nos Estados Unidos, por exemplo, o governante brasileiro anunciou: “Se o Brasil não tiver voto impresso em 2022, vamos ter um problema pior que os EUA”.
Considerando que 41% dos praças da PM já interagiram em comunidades bolsonaristas na internet e 25% ecoam ideias radicais, de acordo com um levantamento feito pelo FBSP, vigiar os rumos dos projetos que alteram as leis das polícias é também um ato de apoio à democracia.