O presidente Jair Bolsonaro chega à Europa nesta terça-feira (15) para uma visita à Rússia e à Hungria. A agenda oficial prevê encontros com Vladimir Putin, presidente russo, e Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro. Visita a parlamentares e reuniões com empresários também devem fazer parte do roteiro.
Com justificativas comerciais, a comitiva brasileira desembarca em Moscou em meio a tensões militares entre Rússia e sua vizinha Ucrânia, envolvendo ainda Estados Unidos e outros países da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). O segundo destino anunciado é justamente Budapeste, capital húngara. Vale lembrar que o Brasil tem status de aliado preferencial dos Estados Unidos na Otan.
Para além das questões militares entre os países europeus e das possíveis questões comerciais a serem tratadas, a viagem presidencial tem outra camada a ser considerada: a pauta de direitos humanos e de defesa da democracia. De acordo com Camila Asano, diretora de programas da Conectas, “Bolsonaro se reunirá com lideranças políticas em dois países notoriamente violadores de direitos, especialmente, de minorias sexuais e de gênero — situação que também está sendo registrada no Brasil”.
“A afinidade entre Rússia e Brasil quando o assunto é o ataque a direitos humanos é bastante nítida no âmbito da ONU”, segue Asano. “Nos últimos três anos, as diplomacias brasileira e russa formaram alianças contra propostas importantes de reconhecimento de direitos fundamentais para mulheres”.
Ainda segundo Asano, no caso da Hungria, “Bolsonaro e Orbán têm ações e discursos anti-democráticos semelhantes, que vão desde tentativas de deteriorar instituições de Estado a investidas contra membros da sociedade civil e acadêmicos”.
Os feitos antidemocráticos do húngaro são tomados ainda como exemplos a serem seguidos no Brasil por aliados do presidente brasileiro. O deputado federal Eduardo Bolsonaro, em determinado momento, considerou o premier da Hungria uma referência.
Desde 2019, registra-se uma aproximação entre Brasil e Rússia nas negociações do Conselho de Direitos Humanos e de outros organismos das Nações Unidas, especialmente na chamada pauta contra os direitos das mulheres
Em julho de 2020, a diplomacia brasileira se juntou à russa e outros países conhecido como violadores de direitos para retirar trechos de uma resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU que trata de medidas para impedir a discriminação de mulheres e meninas.
Um dos trechos em que Brasil e Rússia se manifestaram contrários diz que o acesso aos direitos humanos das mulheres deve incluir os “direitos e saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência”. Além disso, o Brasil optou em se abster diante de outras propostas problemáticas apresentadas pela Rússia, Egito e Arábia Saudita.
Outra aproximação entre os países se deu no início desde ano, quando a Rússia aderiu ao chamado Consenso de Genebra, uma aliança antiaborto e contra direitos humanos de mulheres e meninas composta apenas por 36 países. O chamado consenso foi criado em 2020 pelos Estados Unidos em Genebra (Suíça) durante a era Trump, com total apoio do Brasil. Com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, os norte-americanos deixaram o grupo e o Brasil assumiu a liderança, tendo como principal missão incluir novos países, como ocorreu com a Rússia.
“Sem considerar compromissos internacionais firmados pelo Brasil e contradizendo a definição constitucional do direito à vida, o Consenso de Genebra tem sido usado pelo governo como instrumento de promoção da agenda ultraconservadora comandada pela ministra Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos”, avaliam, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, e Gustavo Huppes, assessor de advocacy internacional da Conectas.
Os dois países votaram ainda contra uma resolução da Comissão de Narcóticos da ONU que, em dezembro de 2020, deixou de considerar a maconha um entorpecente perigoso e reconheceu suas capacidades terapêuticas. O Brasil justificou seu voto dizendo que adota uma “política de tolerância zero com as drogas” e que o uso médico pode expandir seu uso. Outros 27 países votaram a favor da medida, que foi aprovada.
No cenário internacional, o brasileiro e o húngaro são reconhecidos como dois expoentes em políticas contra os direitos humanos e deterioração dos valores democráticos. Como acontece com a Rússia, o governo brasileiro e seus aliados pelo Brasil também se conectam aos húngaros na pauta antigênero. O projeto de lei aprovado na Hungria, que trata de limitar uma suposta “propaganda homossexual”, é inspiração para projetos de lei em diferentes estados do Brasil, que pretendem proibir publicidade e propagandas de conteúdos e notícias sobre diversidade sexual, revela o relatório “Ofensivas antigênero no Brasil”, produzido pela Conectas, Observatório de Políticas de Sexualidade e outras entidades.
Então sob o comando de Ernesto Araújo, O Itamaraty estabeleceu contato com ultraconservadores húngaros na pauta da religião. Em um evento internacional que tratava dos cristão perseguidos, representantes do governo brasileiro defenderam a religião como política de estado, em um franco ataque ao princípio de Estado laico presente na Constituição brasileira. “Essa visão ultraconservadora da religião presente nos dois países, especialmente do cristianismo, ignora a pluralidade do campo religioso e serve para atacar direitos de diferentes grupos sociais”, diz Asano.
Organizações de imprensa e universidades também são focos privilegiados de ataques no país do leste europeu e no sulamericano. No poder desde 2010, Orbán já fechou veículos de comunicação, como a primeira rádio independente do país, e transferiu o controle de pelo menos 11 universidades públicas para fundações ligadas a aliados de seu governo.
“A aversão à liberdade de imprensa e o anti-intelectualismo também ecoam no governo brasileiro e em sua base de apoio. Quase diariamente recebemos notícias de discursos e ações deste tipo, seja do próprio presidente ou de ministros. Soma-se a isso decretos arbitrários e projetos de lei sem base constitucional que atacam direitos à saúde, educação, migração, entre outros”, afirma Asano.
Outra estratégia comum entre Bolsonaro e Orbán é o uso da pandemia de covid-19 para “passar a boiada” contra os direitos fundamentais. Se por aqui o governo brasileiro emitiu medidas sem base constitucional em diferentes temas com a justificativa de controlar o avanço do vírus, como as portarias discriminatórias de fronteiras, o húngaro conseguiu poderes extraordinários para governar por decreto sem estabelecer um limite temporal e sem nenhum controle de outros atores sociais.
Para Asano, ainda que a sociedade civil brasileira esteja obtendo vitórias no Congresso e no Judiciário, é importante observar os movimentos do governo brasileiro, inclusive no âmbito internacional, em um ano eleitoral importante para a democracia brasileira.