Diferente dos ocidentais, que pensam o tempo de forma linear (como se fosse uma linha reta do passado em direção ao futuro), muitos povos indígenas têm uma concepção circular do tempo. É o caso dos Munduruku, que habitam regiões do Pará, Amazonas e Mato Grosso. Como lembra o escritor Daniel Munduruku, em sua tradição, o presente e o passado são uma realidade, enquanto o futuro é uma ficção. “Os avós fazem essa conexão entre o que nós somos hoje e o que nós fomos ontem”, explicou em entrevista ao programa Nosso Mundo, da CNN Brasil. “Essa é a base da nossa pedagogia, nos faz compreender que somente o agora nos compromete com a mudança, com a transformação.”
E é justamente o agora dos povos indígenas que vem sendo comprometido continuamente. Entre alguns dos mais afetados, estão os Munduruku e os Yanomami, que detêm a maior reserva protegida do Brasil. Grande parte dos ataques ocorrem por garimpeiros ilegais. Em maio, duas crianças yanomami, de 1 e 5 anos, perderam a vida depois de uma investida contra a comunidade Palimiú (RR). No mesmo mês, a líder Maria Leusa Munduruku, que recebe recorrentes ameaças de morte, teve a casa destruída depois que garimpeiros atearem fogo a sua aldeia, próximo a Jacareacanga, no Pará, em represália a uma megaoperação contra mineração ilegal da Polícia Federal.
“É inaceitável que mesmo com a presença da Força Nacional na região a aldeia de uma das nossas principais lideranças tenha sido invadida por homens armados, portando galões de gasolina que incentivam o ódio contra todos nós. Tememos pela vida daqueles que lutam sem cansar para defender a vida do povo Munduruku e o futuro de todos nesse planeta”, escreveram em um comunicado organizações de resistência do povo Munduruku.
“Não é exagero falar em iminência de genocídio” destaca a advogada Juliana de Paula Batista, do ISA (Instituto Socioambiental). “Também há grande receio de contato de garimpeiros com grupos indígenas que vivem em isolamento voluntário nas terras Yanomami. Esses grupos são muito vulneráveis a qualquer tipo de doença e o contato pode ser fatal.”
A falta de uma gestão da pandemia que contemple os povos indígenas, os quais fazem parte de um dos grupos mais vulnerabilizados, é uma das principais críticas em relação ao governo. “É importante dizer que é obrigação do governo federal providenciar um plano adequado a esses povos”, ressalta a advogada Júlia Neiva, coordenadora do programa Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas.
Corroendo por dentro
Além da má gestão da crise sanitária, Neiva também chama a atenção para a lenta corrosão das entidades que deveriam ser responsáveis por proteger. “Houve um enfraquecimento de instituições como a Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que contou com cortes de fundos, mas também com uma politização destes órgãos. As pessoas que estão à frente, desde que Bolsonaro assumiu a presidência, não são aptas, não conhecem a temática indígena e tampouco estão ali para proteger esses povos”, afirma. “É evidente que foram colocadas para atender a interesses do governo Bolsonaro, os quais não vão ao encontro da proteção dos indígenas.”
De acordo com Juliana Batista, do ISA, no critério “boiada” — em referência ao afrouxamento de leis ambientais promovido pelo Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles — a gestão Bolsonaro editou diversos atos infralegais que estão desmontando direitos previstos na Constituição. “Nessa linha, menciono a IN (Instrução Normativa) número 9 da Funai, que retirou Terras indígenas não homologadas do Sigef (Sistema de Gestão Fundiária), facilitando a apropriação fundiária de invasores”, e continua, “e a IN nº 1 da Funai e Ibama, que pode facilitar a apropriação de recursos naturais das terras indígenas por não indígenas.”
Por conta da escalada dos conflitos e intimidações, a Conectas se uniu a entidades como a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e diversos partidos e associações para solicitar ao STF (Supremo Tribunal Federal) a adoção imediata de providências visando à proteção da vida dos indígenas que habitam as terras Yanomami e Munduruku, bem como a retirada dos invasores, através da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 709.
Além disso, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e o Escritório Regional da América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas também expressaram preocupação com os atos de violência, exortando o Estado a “cumprir seu dever de proteger a vida, a integridade pessoal, aos territórios e aos recursos naturais desses povos”, como afirmou em um comunicado.
No dia 24 de maio, o ministro Luís Roberto Barroso atendeu a solicitação de entidades participantes da ADPF 709 e determinou a proteção dos territórios por parte da União. “Ainda que pudesse haver qualquer dúvida sobre a ameaça aos bens e direitos já aludidos, os elementos apresentados são suficientes para recomendar que se adotem medidas voltadas à proteção de tais povos”, afirmou o ministro na decisão. “Infelizmente, o ministro Barroso, como tem feito reiteradamente desde o início da ação, adiou novamente a decisão tão necessária de desintrusão dos garimpeiros ilegais das terras indígenas”, diz Neiva. “Outro ponto controverso da decisão foi a revelação de que há um Plano de Isolamento de Invasores, denominado pelo relator como ‘Plano 7 Terras Indígenas’, que tramita em sigilo de justiça. Tal Plano, que conforme também informado apenas na decisão, teria sido apresentado pela Polícia Federal ‘com o propósito de assegurar o êxito das operações’, tem sido desenvolvido sem qualquer possibilidade de debate ou mesmo de participação dos próprios autores da ação.”
Segundo a filosofia circular do escritor Daniel Munduruku, reverenciar o agora é também uma forma de reverenciar o que já passou. Ao ameaçar o presente e a vida dos povos indígenas, o governo federal coloca em risco o próprio passado e as bases da existência de todos os brasileiros. De acordo com o escritor, “é importante olhar o mundo a partir dessa perspectiva para que o Brasil olhe para si mesmo e faça esse movimento de retorno às origens.”