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24/03/2023

Litigância climática: como a justiça pode ser acionada no enfrentamento à crise climática

Em livro, especialistas explicam como o litígio climático pode ser uma ferramenta inovadora para ajudar a combater a crise climática, o racismo e outras desigualdades

Foto: Mauro Pimentel/AFP Foto: Mauro Pimentel/AFP

Em uma ação histórica, em março de 2022, 13 diretores da petrolífera Shell foram processados por não prepararem a empresa para atingir o estágio de ”net zero” — ou seja, zerar as emissões de gases que promovem o efeito estufa —, deixando de alinhar as operações da companhia às metas do Acordo de Paris. De acordo com a organização de direito ambiental ClientEarth, que moveu a ação na justiça britânica, o plano da empresa não é consistente nem específico o suficiente, e os diretores devem ser responsabilizados pessoalmente. 

Apesar de ser só recentemente que o Acordo de Paris está sendo usado para instituir a obrigação de reduzir as emissões de uma empresa, cada vez mais, uma ferramenta de defesa e regulamentação ganha relevância: a litigância climática baseada em direitos humanos, isto é, a responsabilização de governos e empresas por ações que levam ao aumento do aquecimento global com uso de mecanismos e normas de direitos humanos. 

Segundo um levantamento do Grantham Research Institute, da London School of Economics, os primeiros exemplos aconteceram nos Estados Unidos, e datam da década de 1980. Até 2021, já eram 1.904 litígios climáticos em 39 países, envolvendo 13 tribunais ou cortes internacionais e regionais. Mas esse número vem crescendo. Se antes de 2014 eram registrados em média cem ações do tipo por ano no mundo todo, só em 2020 o número foi de 180. Do total das ações mapeadas, 58% foram favoráveis às ações climáticas. 

“À medida que essa ‘virada dos direitos humanos’ nos litígios climáticos se consolidava, os atores que a realizavam, apoiavam ou encorajavam multiplicaram-se rapidamente. Entre eles, figuram organizações ambientais e de direitos humanos de níveis doméstico e internacional, movimentos em prol da justiça social e climática, relatores especiais da ONU, organizações indígenas, promotores públicos e órgãos governamentais e intergovernamentais de direitos humanos”, escreveu César Rodríguez-Garavito, professor da NYU School of Law e Diretor do Center for Human Rights and Global Justice, e organizador do livro “Litigar a Emergência Climática: a mobilização cidadã perante os tribunais para enfrentar a crise ambiental e assegurar direitos básicos”. “Definitivamente, iniciou-se o tempo dos litígios climáticos baseados em direitos humanos.”

Litígio climático no Brasil

No livro, Júlia Neiva, coordenadora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas, e o advogado Gabriel Mantelli, assessor do mesmo programa da Conectas, escreveram um artigo refletindo sobre a abordagem brasileira na litigância climática, destacando o contexto de retrocessos democráticos do governo Bolsonaro, e refletindo sobre a experiência de uma organização da sociedade civil no combate desses retrocessos. 

Segundo destacou Neiva, no evento de lançamento do livro, componentes dos direitos, do racismo ambiental, do racismo climático e das desigualdades sociais já orientam há tempos as ações judiciais de organizações como a Conectas. 

Fundo Clima no STF

Um exemplo foi a decisão tomada no âmbito da ADPF 708 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), movida em 2020 por partidos políticos, com o apoio de entidades da sociedade civil, incluindo a Conectas, que foi amicus curiae no processo. Por 10 votos a 1, o STF (Supremo Tribunal Federal) obrigou o governo federal a manter os recursos para o funcionamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, o Fundo Clima, que existe desde 2009 e é um dos principais órgãos do país no enfrentamento à crise climática. A decisão foi celebrada mundialmente, não só pela relevância do precedente, como por indicar, pela primeira vez, que o Acordo de Paris é um tratado de direitos humanos

“Quando a gente diz que o clima é indissociável dos direitos humanos, estamos perguntando: quem é impactado por essas tempestades terríveis que assolam o nosso país? Quem tem sofrido com as terríveis secas no nordeste brasileiro?”, questionou Neiva, no evento de lançamento do livro.

“Primeiro, esses desastres não são causados só pela natureza, existe a ação de seres humanos. Segundo, os impactos são distintos. É isso que trazemos na discussão dos direitos humanos. Estamos falando que todos vão sofrer os impactos das mudanças climáticas, mas elas serão sentidas de formas diferentes, e a gente precisa que as políticas públicas e que o judiciário percebam isso nas suas respostas”, reforçou a coordenadora, explicando que, além do Estado, o setor privado também tem responsabilidades sobre as violações climáticas e de direitos humanos no Brasil. 

Ação demanda compromisso da BNDESPar com metas climáticas

Outro exemplo brasileiro, inserido no movimento de litigância climática, é a ação civil pública apresentada pela Conectas à Justiça Federal do Distrito Federal que cobra do BNDESPar – a subsidiária do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) responsável por administrar as participações acionárias em empresas detidas pelo banco – a publicação de um plano de redução de emissões de gases do efeito estufa que oriente seus investimentos segundo as metas do Acordo de Paris e da PNMC (Política Nacional sobre Mudanças do Clima). Essa é a primeira ação civil climática, no âmbito da litigância climática, contra um banco nacional de desenvolvimento no mundo. 

De acordo com Neiva, a ação tem como objetivo promover um debate sobre a necessidade de as empresas públicas incluírem a crise climática como variável central em seus planos de investimento e, ao mesmo tempo, atuarem com transparência e segundo critérios de responsabilidade social e ambiental.

O livro foi editado em português no Brasil pela FGV Editora, com o apoio da NYU School of Law, e também está disponível em inglês pela Camdrige University Press e em espanhol pela Siglo XXI.

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