Enquanto o Brasil atravessa seu pior momento da pandemia, com falta de profissionais de saúde e índices de lotação de UTIs próximos do 100%, existe um contingente de mais de 16 mil médicos aptos a trabalhar, mas que não conseguem uma colocação. São os profissionais formados fora do país, que não podem atuar em território nacional porque aguardam a revalidação do diploma. O que poderia ser uma das soluções para o colapso do sistema de saúde encontra resistência na lentidão do governo federal.
A prova de revalidação dos diplomas médicos, o Revalida, feita pelo Inep (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais), órgão do Ministério da Educação, teve apenas uma primeira fase teórica, em dezembro de 2020. Uma lei de 2019 exige a aplicação do teste a cada seis meses, mas a exigência nunca foi cumprida. Até agora não há previsão para a aplicação da segunda fase.
Ao lado de entidades como Associação Compassiva, Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH); Missão Paz e Visão Mundial, a Conectas enviou um ofício ao Inep expondo preocupação quanto ao calendário de realização da prova e término do processo.
Citando o estudo Demografia Médica no Brasil 2020, realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em dezembro, as entidades lembram que “as regiões Norte e Nordeste têm razões de médicos por habitantes muito menores do que as demais regiões do país, além de demonstrar a existência de desertos médicos, ou seja, áreas totalmente desassistidas por estes profissionais”.
“Desde março do ano passado, três edições do Revalida já deveriam ter acontecido e, no entanto, não finalizamos nenhuma de lá para cá”, aponta Camila Asano, diretora de programas na Conectas. “Foram mais de 16 mil médicos formados no exterior, entre brasileiros e migrantes, inscritos na primeira fase do Revalida 2020, os quais fariam uma enorme diferença para salvar vidas no atual cenário.”
Asano lembra de outras medidas que poderiam ser tomadas, considerando a atual situação de emergência, como a revalidação de diplomas médicos por meio da Plataforma Carolina Bori do MEC, ou por meio de editais próprios das universidades públicas. A reintegração de ex-participantes do antigo Programa Mais Médicos, que permanecem no Brasil, também ajudaria a amenizar o problema, a exemplo do Governo de Minas Gerais, que sancionou a Lei 23.799/2021, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado, que permite a contratação excepcional e temporária de ex-participantes do Mais Médicos.
“Organizações que acompanham de perto este problema, como a Compassiva, sugerem que os governos estaduais também poderiam se debruçar mais sobre a temática, seguindo o exemplo do governo da Bahia, que lançou, por meio do Decreto 20.309/2021, um Programa de Apoio às Universidades Estaduais na revalidação de diplomas médicos”, destaca a diretora.
Dos mais 16 mil inscritos na primeira fase do Revalida, realizada em dezembro, apenas 2.402 profissionais, distribuídos em diferentes cidades, foram aprovados para a segunda fase, que é prática. O valor da taxa de inscrição, no entanto, é um desestímulo à participação. “É primordial que o Instituto não coloque mais empecilhos para que os candidatos sigam no processo, como o valor anunciado para a taxa da segunda fase do exame, que ultrapassa 3 mil reais”, destaca Asano. “A Lei do Revalida estabelece que o custo será limitado pelo valor da bolsa vigente do médico-residente, ou seja, este é o teto e não o piso, podendo o Instituto cobrar um valor menor e mais condizente com as condições dos candidatos.”
Ainda assim, a aplicação da segunda fase da prova segue sem uma data definida. Apesar das alegações do Inep, de que a pandemia teria atrapalhado o cronograma, Asano lembra que a última edição do Revalida ocorreu em 2017. Além disso, por ser prática, a segunda fase poderia ser aplicada seguindo as normas de segurança sanitária.
O próprio Inep afirmou ter realizado estudo técnico admitindo que a segunda fase pode ser aplicada em hotéis, universidades e escolas, mas a CAAFM (Comissão Assessora de Avaliação da Formação Médica), responsável pela definição das competências do Revalida, foi contrária a esta hipótese, insistindo que a prova prática ocorra em ambulatórios de hospitais quando estes estiverem menos cheios. “A posição da CAAFM desconsidera a urgência da pandemia e dos recordes de óbitos diários que estamos tendo”, afirma Asano.
“É importante que o Inep preveja no edital medidas que inibam qualquer possibilidade de aglomeração, como distanciamento, obrigatoriedade do uso de máscaras e higienização das mãos, disponibilização de mais cidades e prédios de universidades e escolas com diferentes salas para uso, mas que não use o argumento da pandemia para adiar ainda mais uma das soluções para suprir a falta de médicos em meio ao momento mais grave e emergencial da pandemia no Brasil”, finaliza.